sábado, 28 de maio de 2016

Como podemos interferir na banalização da violência contra a mulher? - Paulo Ghiraldelli





Como podemos interferir na banalização da violência contra a mulher?



Nos anos oitenta a ideia de que o Brasil iria passar por dificuldades por conta da “sexualidade precoce” induzida, veio pela esquerda. Marta Suplicy lançou essa tese em um Roda Viva, da TV Cultura. E mais: culpou a Xuxa por estar provocando esse adiantamento nas meninas e meninos.

Agora, a tese vem pela direita, e com agravantes. Lobão relançou a ideia da seguinte forma: o Brasil é uma “fábrica de putinhas”, e isso advém da sexualidade precoce, produzida na família. O resultado, então, para ele, é que com isso as meninas e moças ficam vulneráveis ao estupro. Parece que em termos de sexo e violência, mesmo os que gostam de ouvir direita e esquerda, deveriam ficar precavidos. Esse pessoal já não tem nada a dizer em política, quanto mais sobre sexo e violência!
Não tardou em aparecer um jornal de TV adepto da tese do Lobão. Ressaltou uma jornalista: a adolescente que foi vítima de abuso por trinta homens foi mãe aos treze anos. Não sei se é verdade. Isso pouco importa. Mas, para a jornalista, importou. Ela sublinhou esse trecho na sua fala, quase como dizendo: trata-se de sexualidade precoce e, portanto, vulnerável ao estupro.
A tese do Brasil como “fábrica de putinhas” (ou qualquer outro lugar) não tem a ver com machismo diretamente. Tem a ver com algo bem mais amplo. Muito mais amplo, que o feminismo teima em desconsiderar. Explico.
Lembram-se do garoto que ateou fogo no indio em Brasília? Quando perguntado as razões do ato, ele simplesmente disse: “eu não sabia que era um índio, parecia um mendigo”. Ora, muitos jovens quando perguntados pela razão pela qual agrediram uma menina na rua, não titubeiam em dizer: “ora, parecia uma puta”. Mendigo ou puta são nomes, entre outros, que dão aval para a degradação. Desnuda-se aí o fio do novelo de uma semântica que abre as possibilidades para o ataque sem culpa. Aquilo que é entendido como um nada, como o descartável, o lixo, é rapidamente aceito como o que pode ser tratado como o que é o descartável, o lixo.
Nosso trabalho, portanto, não é o de fazer campanhas do tipo “não mereço ser estuprada” ou “contra a cultura do estupro” ou coisa parecida. Essas campanhas, já disse em outro artigo, só aguçam o ódio social porque favorecem o aparecimento de políticos inescrupulosos e feministas tresloucadas que querem resolver os problemas apelando para a pena de morte ou castração e outros métodos cuja única utilidade mesmo é o de alimentar o ego dos ofendidos de sempre, que em geral nem mesmo foram ofendidos.Perde-se em pedagogia, justiça e civilidade. O bom trabalho para o combate da violência, em especial a violência doméstica e o estupro, é localizar os campos semânticos que estão postos de uma tal maneira em nossa conversação que autorizam a degradação.
“Puta”, “mina”, “vagabunda” e coisas dos tipo precisam ser pronunciadas para dar o aval ao agressor. Nenhum agressor comum está isento de algum senso moral. Nem mesmo os nazistas haviam perdido seu senso moral. A atrocidade ocorre pela permissão semântica. Se olho para uma mulher e vejo minha mãe ou minha irmã ou uma tia querida ou uma professora que me ajudou etc., essa mulher tem menos chance de cair na vala do campo semântico que parece autorizar a atrocidade. Cada sociedade tem o seu vocabulário próprio que abre as possibilidades para que “homens de bem” faça o mal e para que bandidos declarados ampliem o mal que inicialmente iria ser feito de modo mais brando.
A questão aí, portanto, não é de censura para criar, por vias dos desvios do “politicamente correto”, uma capa de “não me toques não me reles”, mas sim de gerar olhos e ouvidos clínicos, capazes de recolocar a semântica a favor da não-violência. A palavra “puta”, por exemplo, pode continuar como palavrão ou como versão popular do descritivo “prostituta”, isso não importa, mas o que é preciso mudar são as narrativas que envolvem “puta”. Se o “politicamente correto” vai pela palavra e proibição, a boa redescrição pega outro caminho, e o que faz é associar tal palavra, por exemplo, a narrativas em que ela não se associe de modo unilateral ao que pode ser a palavra “lixo” ou coisas como “estou pedindo para ser agredida”.
Uma sociedade começa a ser livre quando uma palavra como “puta” não tem que ser extirpada, como às vezes o feminismo faz, mas sim vista como permitida exatamente na medida em que não serve mais, se modo positivo e correto como sinônimo de “estou na vida para apanhar” ou “sou a Geni boa de cuspir”.
Essas alterações são feitas durante um longo caminho de elaboração de boas narrativas, aquelas que sabem criar sensibilidade nossa para com as palavras que, inicialmente, serviam de porta aberta para a nossa maldade. Aqui, nada como lembrar Richard Rorty: essas narrativas implicam no bom jornalismo, na literatura sábia, no ensaio filosófico de calibre, na indústria cinematográfica sedutora, na música que faz pensar etc. Os clássicos da literatura e das artes são narrativas que não evitam palavras, mas trazem uma exposição de uso delas que nos faz pensar sobre seu uso automático. Nos faz mudar. Por isso é sempre interessante, ao tentarmos mudar, aproveitar o nosso patrimônio cultural que já fornece boas narrativas e é capaz de interessantes redescrições.
Paulo Ghiraldelli, 58, filósofo.

Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/violencia-contra-mulher/

sexta-feira, 13 de maio de 2016

O GOLPE é OUTRO - César Benjamin



O GOLPE É OUTRO
Programa que será imposto ao país não teria a aceitação das urnas
CÉSAR BENJAMIN – (2 de maio de 2016)

Meus amigos estranharam quando eu disse que me opunha à aceitação, pela Câmara dos Deputados, da admissibilidade do impedimento de Dilma Rousseff. Sempre fui crítico dos governos do PT e considero a presidente uma figura lamentável sob todos os pontos de vista. Além disso, ao contrário do que dizem os governistas, não creio que as regras democráticas estejam em risco. Os motivos jurídicos para o impedimento são controversos, mas existem. Somam-se, é claro, a motivos políticos.

Oponho-me ao processo em curso por causa dos desdobramentos que ele terá: um governo não eleito encontrará pronta uma maioria parlamentar qualificada – apta, pois, a alterar a Constituição –, articulada sabe-se lá de que forma, aberta a todo tipo de negociações e ávida para repartir o novo poder. Será um salto no escuro. O programa apresentado há pouco tempo pelo PMDB, intitulado “Uma Ponte para o Futuro”, antecipa que diversos dispositivos constitucionais, como as despesas obrigatórias em educação e saúde, a indexação dos benefícios da seguridade social ao salário mínimo e o estatuto do Banco Central, serão questionados. Também será questionada a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), pois, a depender do PMDB, os acordos diretos entre patrões e empregados terão mais valor do que aquilo que as leis determinam. O mesmo texto promete uma política econômica conservadora puro-sangue, sem as ambiguidades do PT, o que inclui um corte drástico nas despesas de custeio para obter um megassuperávit nas contas do setor público. Chega a ser difícil imaginar o significado disso.

O golpe, em curso, não será o afastamento de Dilma Rousseff. Será a formação de um governo comprometido com um programa que muito dificilmente seria aceito pelo povo brasileiro nas urnas. Estaremos expostos a um intenso fogo de barragem, com o mesmo grupo de economistas apresentando sua versão, reiteradamente, de modo a legitimar pela imprensa alterações constitucionais importantes, patrocinadas por um governo não eleito e realizadas por um Congresso que já perdeu legitimidade aos olhos da população.

O impedimento mimetizará uma eleição indireta. Aqui desembocou a esperteza política do PT e de Lula, tão enaltecida nos últimos anos. Foram eles que se juntaram a figuras lombrosianas e lhes deram tanto poder.

Seja qual for o governo, o padrão de gastos do Estado – e, portanto, sua relação com a sociedade – precisará ser revisto em uma dimensão que ultrapassa muito as desastradas tentativas de ajuste que estão em curso desde janeiro do ano passado. A atual configuração desses gastos e o nível de consumo a que a sociedade se acostumou na última década não são compatíveis com um crescimento econômico sustentado, com relativo equilíbrio nas contas fiscais e externas. Empurramos o problema para frente durante alguns anos, à custa de aumentar endividamentos. É certo que esse tempo acabou. Mas há diferentes maneiras de lidar com a questão, não uma só.

Entre os grandes gastos do Estado, destacam-se a seguridade social, que cuida dos pobres, e a rolagem da dívida pública, que cuida dos ricos. Juntas, representam nada menos que 22% do Produto Interno Bruto. Apesar de sua importância, são dois temas em que a desinformação predomina. Vale a pena olhar para eles.

A dívida pública se aproxima dos 3 trilhões de reais. Diante da enormidade desse número, é fácil convencer as pessoas de que o Estado é irresponsável, gasta muito mais do que arrecada e por isso se endivida pesadamente junto ao setor privado, sugando recursos que poderiam se destinar ao investimento. Isso justifica os cortes draconianos anunciados, que seriam necessários para que possamos juntar recursos para pagar essa dívida. É a economia política da dona de casa, totalmente intuitiva. Se ela fosse verdadeira, as faculdades de economia poderiam fechar.
Dívidas públicas existem no mundo inteiro porque são um recurso legítimo dos Estados nacionais. Como os investimentos feitos hoje beneficiam as gerações futuras, é justo que elas repartam os custos com as gerações atuais. Quando bem realizados, esses investimentos estimulam o crescimento econômico e contribuem para aumentar a capacidade de arrecadação de tributos, equilibrando as contas num momento seguinte.
O segredo que os economistas sabem, mas precisa ser compartilhado com todos, é o seguinte: nenhuma dívida pública do mundo jamais será paga. Por isso, não há um limite fixo para elas (o Japão deve 230% do seu PIB, os Estados Unidos, 104%).

Seu tamanho só é relevante na medida em que influencia os custos e as condições de sua rolagem em cada momento. A dívida brasileira não é especialmente alta, como percentagem do PIB (em torno de 67%), mas é muito cara. Além disso, as trapalhadas de Dilma Rousseff aceleraram seu crescimento, o que, de fato, inspira cuidados, pelos custos crescentes que isso acarreta.
Mas é essencial não perder de vista que dívida pública não é igual a dívida privada. Nem os governos vão pagá-la, nem os credores, de posse de títulos que lhes garantem ótimos rendimentos, querem recebê-la, pois ambos precisam dela.

Os títulos públicos brasileiros são hiperindexados e recebem generosos juros reais. Negociados diariamente, são um ente híbrido, uma dessas jabuticabas que só existem aqui: rendem como se fossem uma poupança premiada, mas têm a mesma liquidez da moeda. Nossa economia funciona, pois, com dois tipos de moeda: a comum, à qual todos têm acesso e que se desvaloriza no ritmo da inflação, e a financeira, que, além de protegida, dá lucro certo, sem passar pelas operações da economia real. Nessas condições, será mesmo que o setor privado financia o governo, ou ocorre justamente o contrário? Quem, afinal, financia quem?

O problema, como se vê, não está só no nível da taxa de juros, mas no próprio regime de política monetária que predomina no Brasil. A rolagem da dívida, nessas condições, custa 8% do PIB, sem gerar gritarias. O que tira o sono dos conservadores é o salário mínimo pago aos aposentados. É aí que querem desindexar, em nome do equilíbrio financeiro do setor público, ameaçado pelo alegado déficit da Previdência Social. Também aqui a confusão predomina, pois há números para todos os gostos.

O grande acordo civilizatório inscrito na Constituição de 1988 foi a formação de um sistema de seguridade com três componentes: saúde pública (amparo universal aos doentes), assistência social (amparo a portadores de deficiência e a pessoas em situações de risco social) e previdência (amparo aos que ultrapassaram o período de vida laborativa). Esse sistema, que o programa apresentado pelo PMDB quer desmontar, é o coração do pacto social brasileiro contemporâneo. Por sua extensão, capilaridade e profundidade, provavelmente é o principal motivo da nossa relativa estabilidade social. Justamente por isso é caro: custa 14% do PIB.

Os dois primeiros componentes da seguridade correspondem a direitos líquidos de cidadania. Como tal, não contam com receitas próprias, sendo financiados pelos tributos que os constituintes criaram para esse fim (as contribuições sociais). Não se aplica nesses casos o conceito de déficit (ninguém diz, por exemplo, que uma escola pública, que oferece ensino gratuito, é “deficitária”; tampouco se pode dizer isso de um hospital público ou da assistência a uma pessoa pobre e portadora de uma deficiência grave). Só o terceiro componente da seguridade, a previdência propriamente dita, gera receitas próprias.

Mesmo assim, a situação financeira da seguridade oscila ano a ano, entre déficits e superávits, conforme a conjuntura econômica do país. Opera contra seu equilíbrio o mecanismo denominado Desvinculação de Receitas da União (DRU), que permite ao governo não aplicar na seguridade uma parte dos tributos que são recolhidos em nome dela. (Em 2015, o governo federal deu algo como 160 bilhões de reais em desonerações fiscais para diversos setores do empresariado, o que mostra uma esquizofrenia: abre-se mão de receitas com facilidade, e ao mesmo tempo denuncia-se a existência de um déficit.)

A Previdência, especificamente, tem em torno de 33 milhões de beneficiários, com rendimentos médios de 1.207 reais. É muito difícil prever sua evolução, pois as variáveis decisivas para seu equilíbrio financeiro de longo prazo não estão situadas dentro dela, mas na economia como um todo: a evolução do emprego formal, o patamar de salários, a produtividade dos trabalhadores ativos etc. É justo rever abusos e privilégios, onde eles existem, e prudente adotar medidas para adaptar o sistema ao novo perfil demográfico brasileiro – aumentando a idade para as aposentadorias, por exemplo –, mas nada disso pode servir de pretexto para um desmonte selvagem.

Há um bom debate a ser feito, envolvendo um espectro de posições sérias muito mais amplo do que normalmente se vê. Mas, pelo andar da carruagem, não haverá debate nenhum. Um governo não eleito e um Congresso desmoralizado, contando com grande banda de música, formarão um rolo compressor sobre a cidadania, impondo mudanças regressivas no meio de uma crise social já enorme. Não sabemos para onde isso vai nos levar.

Estamos diante de uma escolha de Sofia: se Dilma Rousseff, por milagre, sobreviver ao impedimento, continuaremos sujeitos a um não governo. Se Michel Temer assumir, teremos um governo hostil à construção da nação. O problema, pois, não é que as regras formais da democracia estejam em perigo. De certa forma, é justamente o oposto: estamos às vésperas de um grave retrocesso social e civilizatório tornado possível pelo desastre do PT e pelo manejo dessas regras pela oposição.

A dimensão de longo prazo da crise atual é ainda mais grave: o sonho do Brasil-nação, que floresceu no século XX, pode estar terminando ou, pelo menos, sendo colocado em suspenso por longo tempo. Presos em nosso labirinto de mediocridade, incapazes de realizar um esforço endógeno minimamente coerente, desprovidos de forças nacionais renovadoras, caminhamos para estacionar em nosso lugar natural no sistema-mundo, a mais extrema periferia. O PT não consegue ver isso, pois, apesar de ter alguma sensibilidade social, nunca pensou a nação.

A solução menos ruim é que o Tribunal Superior Eleitoral casse a chapa Dilma–Temer, pelas ilegalidades cometidas durante o processo eleitoral. A convocação de novas eleições propiciaria dois ganhos para o país: a realização de um debate de grande intensidade, que ajudaria a explicitar as questões de fundo, e a formação de um novo governo legítimo, seja ele qual for. Precisamos deter a marcha da insensatez.




sexta-feira, 6 de maio de 2016

A Queda de Eduardo Cunha-05-05-2016


A QUEDA DE CUNHA-05-05-2016


Eduardo Cunha


Teori antecipa liminar e afasta tentativa de golpe no impeachment de Marina, Marco Aurélio e Lewandowski A trama é rocambolesca, mas, acreditem!, verdadeira. Se você tem a impressão de que a esculhambação já chegou ao Supremo, então está certo!


Eduardo Cunha vai ser destituído da Presidência da Câmara? Acho bom para o Brasil e para o futuro presidente, Michel Temer. Dito isso, vamos ver.

Se você está com a impressão, leitor amigo, de que a esculhambação ameaça romper o cerco e chegar ao Supremo, então é um otimista. Isso já aconteceu.

A Procuradoria-Geral da República havia entrado com uma Ação Cautelar, no fim do ano passado, para afastar Eduardo Cunha da Presidência da Câmara, acusando-o de usar o cargo para obstruir o processo que contra ele corre no Conselho de Ética. A decisão estava a cargo de Teori Zavascki, que não tinha estabelecido uma data para decidir.

A situação é complexa. O Supremo destituir o presidente da Câmara não é coisa corriqueira. Quem quer que leia a Ação Cautelar de Rodrigo Janot vai constatar que se trata de um conjunto de ilações, sem a evidência fática de que Cunha transgrediu, de fato, o Regimento Interno da Casa para se manter no poder. Afinal, uma coisa é rasgar o Regimento; outra, diferente, é saber jogar com ele, ainda que com maus propósitos. Adiante.

A Rede, partido que milita fanaticamente contra o impeachment — embora tente disfarçar os seus propósitos —, entrou com uma ADPF — Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental — pedindo a destituição de Cunha, sustentando que ele não pode estar na linha sucessória. Afinal, é réu no Supremo. Argumentação: se um presidente não pode ser réu, e por isso Dilma será afastada, seu substituto temporário também não. Quando Temer assumir o comando do país, Cunha é que ocuparia seu lugar nos períodos de eventuais viagens fora do país.

Muito bem! O relator da ADPF é o ministro Marco Aurélio. Para começo de conversa, ele nem deveria ter reconhecido o instrumento. No país do habeas corpus preventivo, temos agora a ADPF preventiva. Logo teremos o Mandado de Segurança Preventivo e a Ação Direta de Inconstitucionalidade Preventiva. Vale dizer: eu adivinho o que o outro vai fazer e já recorro à Justiça.

Mas Marco Aurélio reconheceu. Não só reconheceu como mobilizou Ricardo Lewandowski para atropelar a pauta do Supremo e pôr a ADPF em votação. Qual seria o resultado? Não sabemos. O fato é que a petição da Rede sugere que todos os atos praticados por Cunha no exercício da Presidência da Câmara são ilegítimos porque estariam violando preceitos fundamentais.

Em casos assim, cumpre ao Supremo modular a decisão, vale dizer: se algo foi feito enquanto um preceito fundamental estava sendo violado, então é preciso reparar de algum modo o dano. É claro que isso abriria uma janela retórica ao menos para questionar o impeachment, já que, na sua trajetória, há a decisão inaugural de Cunha: recebeu a denúncia.

Marco Aurélio e Lewandowski atropelaram Teori Zavascki e se preparavam para transformar o Supremo num palco — a palavra que me ocorre é outra, mas fiquemos por aqui mesmo. Dificilmente o Supremo acataria — ou acatará — a tentativa de anular o processo de impeachment na Câmara, mas a dupla do barulho forneceria munição a essa tese.  Marina Silva, enquanto isso, ajeitaria o seu xale e faria cara de santa do pau oco da floresta.

Teori se antecipou

Sentindo o fedor da tentativa de golpe, Teori passou a noite trabalhando e, em decisão liminar, afastou Cunha da Presidência da Câmara. Ora, uma liminar de Ação Cautelar tem efeito imediato e, portanto, tem precedência sobre ADPF. Assim, os ministros terão de se posicionar sobre a decisão de Teori, que deve ser endossada, e a ADPF fica prejudicada, bem como a tentativa do partido de Marina Silva e, tudo indica, de dois ministros do Supremo ao menos de melar o processo do impeachment.

Instituições

É claro que Cunha está muito bem afastado. Há muito já deveria ter sido cassado. Mas não é menos evidente que o protagonismo do Supremo nesse caso é indesejado.

Por que o governo não gostou na decisão de Teori? Porque tirou o palco para o proselitismo de Marco Aurélio e Lewandowski. Tanto estava o Planalto preparado para a ação que José Eduardo Cardozo já anunciou que vai usar a decisão de Teori como base para um novo pedido de anulação do processo na Câmara. Vai usar e sabe que será malsucedido porque nada na liminar dá azo a essa possibilidade.

A síntese das sínteses é esta: ao se antecipar, Teori afastou uma tentativa de golpe no impeachment desfechada pelo Planalto, com o auxílio luxuoso de Marco Aurélio, Lewandowski e Marina Silva.


Reinaldo Azevedo  05/05/2016 às 15:37
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Nota: próximo do encerramento da sessão, o ministro Barroso quis ouvir os argumentos dos advogados da Rede, alegando que eles teriam vindo de muito longe para Brasília. No entanto, felizmente, a ministra Carmen Lúcia interveio dizendo que a sessão tinha sido longa e cansativa e, portanto, poderia ficar para outra oportunidade... Tradução: Barroso não seria um estranho à manobra desejada por Marina, Marco Aurélio e Lewandovski...

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Estou contente com a decisão, a exemplo da maioria, mas não tem amparo constitucional
Decisão de Teori desarmou palanque no qual Marco Aurélio, Lewandowski e, quem sabe?, Roberto Barroso pretendiam discursar

Vamos lá. Estou contente que Eduardo Cunha (PMDB-RJ) tenha sido afastado de seu mandato e que não esteja mais na Presidência da Câmara. Já escrevi aqui algumas dezenas de vezes: acho que ele tem de ser cassado. Mais ainda: penso que o afastamento é positivo para o governo Michel Temer porque não é segredo pra ninguém que, para qualquer presidente da República, mesmo um aliado, é melhor um Cunha fraco do que um forte.

Mas não escrevo pensando apenas em amanhã e depois de amanhã. Não abro mão de um princípio: na democracia, melhor uma solução ruim amparada na Constituição do que uma boa amparada no arbítrio. A boa decisão contra a Carta acabará fatalmente virando um erro; a má decisão a favor da Carta acabará fatalmente sendo um acerto.

Quase todos os ministros que tinham ciência do peso do que estavam votando — o próprio Teori, Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Celso de Mello — chamaram a atenção para o caráter excepcional da medida. Tanto é assim, meus caros, que estamos diante de um fato inédito.

Que fique claro: não existe amparo na Constituição para a decisão que foi tomada. O fato de eu estar contente com o afastamento de Cunha não me deixa contente com o horizonte que se abre com essa decisão. Como esquecer? Delcídio do Amaral foi flagrado tentando obstruir a Justiça e a investigação da Lava Jato. Nem importa saber se seu plano era ou não mirabolante e inexequível. De tal sorte foi considerado grave o que fez que teve a prisão decretada pelo Supremo. E, no entanto, conservou o seu mandato. Como suspender o mandato de quem não foi preso?

Notem: um político pode, sim, ir para a cadeia, mas permanece com o seu mandato. Vimos isso acontecer nas condenações do mensalão.

Não estou sozinho no meu estranhamento. Em entrevista à Folha, Eloísa Machado, professora do curso de direito da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo e Coordenadora do projeto “Supremo em Pauta”, que estuda o tribunal, também expressa certa perplexidade e vai ao ponto: “É evidente que uma decisão dessas tem um impacto enorme no sistema político. Imagine o seguinte: todos os deputados que são réus serão afastados? Ou isso só vale para o Cunha?”

É uma boa pergunta. Os ministros, em seus respectivos votos, tentaram, de algum modo, tranquilizar a todos: “Olhem, isso não vai virar um hábito…” Pois é. Por que não?
Faço minhas as palavras da professora Eloísa Machado: “Essa decisão me dói porque o Cunha não deveria estar na presidência da Câmara, mas, ao mesmo tempo, fica uma sensação de insegurança porque a decisão está fora dos parâmetros constitucionais.”

Bastidores


É claro que, a isso tudo, faltam bastidores, não é? Parece que Teori Zavascki, com efeito, vinha evitando tratar da Ação Cautelar movida pela Procuradoria Geral da República porque sabia do risco que ela trazia.
Mas aí surgiu a ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) da Rede, que caiu nas mãos de Marco Aurélio. Serelepe, ele conseguiu pautar a matéria com Ricardo Lewandowski. Já tratei do assunto aqui. Tratava-se de um ADPF preventiva, argumentando que a permanência de Cunha na Câmara feria preceitos fundamentais e que ele não poderia estar na linha sucessória, uma vez que é réu. Nota: nada disso está na Constituição.

Armava-se um palco para Marco Aurélio questionar as decisões do presidente da Câmara, incluindo o primeiro ato de aceitação da denúncia que resultou no impeachment. Teori houve por bem conceder, então, a sua liminar. Cuidou menos da questão da linha sucessória do que dos atos que, entendeu ele, Cunha tomou para obstruir a investigação.

O palanque no qual Marco Aurélio, Lewandowski e, quem sabe?, Roberto Barroso poderiam discursar foi desfeito. Isso pode explicar essa quinta-feira estranha. Mas não deve tranquilizar ninguém.

Cunha está afastado da Câmara e não preside mais a Casa. Isso, em si, é bom. Mas, do ponto de vista institucional, estamos um pouco mais enrolados, acreditem.

Reinaldo Azevedo  06/05/2016 às 3:54