domingo, 15 de março de 2015


 A VENEZUELA e o ABISMO




Mario Vargas Llosa



Quando o Governo venezuelano de Nicolás Maduro autorizou sua guarda pretoriana a usar armas de fogo contra as manifestações de rua dos estudantes sabia muito bem o que fazia: seis jovens já foram assassinados nas últimas semanas pela polícia ao tentar calar os protestos de uma sociedade cada vez mais enfurecida com os atropelos desenfreados da ditadura chavista, a corrupção generalizada do regime, o desabastecimento, o colapso da legalidade e a situação crescente de caos que se estendem por todo o país.


Esse contexto explica a escalada repressora do regime nos últimos dias: a detenção do prefeito de Caracas, Antonio Ledezma, um dos mais destacados líderes da oposição, quando se completava um ano da prisão de Leopoldo López, outro dos grandes resistentes, e meses depois de haver privado de modo abusivo da condição de parlamentar –e ter submetido a um assédio judicial sistemático– María Corina Machado, figura relevante entre os adversários do chavismo. O regime se sente encurralado pela crítica situação econômica à qual sua demagogia e inépcia conduziu o país, sabe que sua popularidade está caindo e que, ao menos que dizime e intimide a oposição, sua derrota nas próximas eleições será cataclísmica (as pesquisas mostram que tem apenas 20% de popularidade).


Por isso desatou o terror de maneira descarada e cínica, dando a desculpa habitual: uma conspiração internacional dirigida pelos Estados Unidos, da qual os opositores democráticos do chavismo seriam cúmplices. Conseguirá calar os protestos mediante os crimes, torturas e batidas policiais maciços? Há um ano conseguiu, quando, encabeçados pelos estudantes universitários, milhares de venezuelanos se lançaram às ruas em toda a Venezuela pedindo liberdade (eu estive lá e vi com os próprios olhos a formidável mobilização libertária dos jovens de todas as condições sociais contra o regime ditatorial). Para isso foi necessário o assassinato de 43 manifestantes, muitas centenas de feridos e de torturados nos presídios políticos e milhares de detidos. Mas no ano que transcorreu a oposição ao regime se multiplicou e a situação de desmando, desabastecimento, opróbrio e violência só serviu para encolerizar cada vez mais as massas venezuelanas. Para tolher e submeter esse povo desesperado e heroico será preciso uma repressão infinitamente mais sanguinária do que a do ano passado.


Maduro, o pobre homem que sucedeu Chávez na cabeça do regime, demonstrou que sua mão não treme na hora de fazer correr o sangue dos compatriotas que lutam pela volta da democracia à Venezuela. Quantos mortos mais e quantas prisões repletas de presos políticos serão necessários para que a OEA e os Governos democráticos da América Latina abandonem seu silêncio e ajam, exigindo que o Governo chavista renuncie à sua política repressora contra a liberdade de expressão e a seus crimes políticos, e facilitem uma transição política da Venezuela a um regime de legalidade democrática?


No excelente artigo Um estentóreo silêncio, como costumam ser os que escreve, Julio María Sanguinetti (EL PAÍS, 25 de fevereiro de 2015) censurava severamente esses Governos latino-americanos que, com a tépida exceção da Colômbia – cujo presidente se ofereceu para mediar entre o Governo de Maduro e a oposição –, observam impassíveis os horrores que o povo venezuelano padece sob um Governo que perdeu todo o sentido dos limites e age como as piores ditaduras sofridas pelo continente das oportunidades perdidas. Podemos estar certos de que o emotivo chamado do ex-presidente uruguaio à decência, feito aos dirigentes latino-americanos, não será escutado. Que outra coisa se poderia esperar dessa lastimável coleção em que abundam os demagogos, os corruptos, os ignorantes, os políticos rasteiros? Para não falar da Organização dos Estados Americanos, a instituição mais inútil que a América Latina produziu em toda a sua história: a tal ponto que, se poderia dizer, cada vez que um político latino-americano é eleito para o cargo de secretário-geral parece abrandar-se e sucumbir a uma espécie de catatonia civil e moral.


Sanguinetti contrapõe, com muita razão, a atitude desses Governos “democráticos” que olham para o outro lado quando na Venezuela os direitos humanos são violados e canais, emissoras de rádio e jornais são fechados com a celeridade com que esses mesmos Governos “suspenderam” o Paraguai da OEA quando esse país, seguindo os mais estritos procedimentos constitucionais e legais, destituiu o presidente Fernando Lugo, uma medida que a imensa maioria dos paraguaios aceitou como democrática e legítima. A que se deve o uso de dois pesos e duas medidas? A que o senhor Maduro, que compareceu à transferência do comando presidencial no Uruguai e foi recebido com honras por seus colegas latino-americanos, seja de “esquerda” e os que destituíram Lugo fossem supostamente de “direita”.


Embora muitas coisas tenham mudado para melhor na América Latina nas últimas décadas – há menos ditaduras do que no passado, uma política econômica mais livre e moderna, uma redução importante da extrema pobreza e um crescimento notável das classes médias –, seu subdesenvolvimento cultural e cívico é ainda muito profundo e isso se torna patente no caso da Venezuela: para não serem acusados de reacionários e “fascistas’”, os governantes latino-americanos que chegaram ao poder graças à democracia estão dispostos a cruzar os braços e olhar para o outro lado enquanto um bando de demagogos assessorado por Cuba na arte da repressão vai empurrando a Venezuela até o totalitarismo. Não se dão conta de que sua traição aos ideais democráticos abre as portas a que no dia de amanhã seus países sejam também vítimas desse processo de destruição das instituições e das leis que está levando a Venezuela à beira do abismo, ou seja, a se transformar em uma segunda Cuba e a aguentar, como a ilha do Caribe, uma longa noite de mais de meio século de ignomínia.


O presidente Rómulo Betancourt, da Venezuela, que era de um calibre diferente dos atuais, pretendeu, nos anos sessenta, convencer os Governos democráticos da América Latina de então (eram poucos) a chegar a um acordo sobre uma política comum contra os Governos que – com o de Nicolás Maduro– violentassem a legalidade e se convertessem em ditaduras: romper relações diplomáticas e comerciais com eles e denunciá-los no plano internacional, a fim de que a comunidade democrática ajudasse desse modo quem, no próprio país, defendesse a liberdade. Não é preciso dizer que Betancourt não obteve apoio nem sequer de um único país latino-americano.


A luta contra o subdesenvolvimento sempre estará ameaçada de fracasso e retrocesso enquanto os dirigentes políticos da América Latina não superarem esse estúpido complexo de inferioridade que nutrem contra uma esquerda à qual, apesar das catastróficas credenciais que possa exibir em temas econômicos, políticos e de direitos humanos (não bastam os exemplos dos Castro, Maduro, Morales, Kirchner, Dilma Rousseff, o comandante Ortega e companhia?), concedem ainda uma espécie de superioridade moral em temas de justiça e solidariedade social.

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