Cuba: Golpe contra novos rumos, por Cacá Diegues
(Postada em 24 de fevereiro de 2013)
Fonte:
POLÍTICA
Cuba
Golpe contra novos rumos, por Cacá Diegues
Cacá
Diegues, O Globo -23/02/2013
Não é muito
fácil, para uma pessoa da minha idade, falar sobre Cuba. Para minha geração,
Cuba foi um modelo de sonho, esperança de um inédito socialismo democrático,
com liberdades individuais, direitos e oportunidades iguais para todos,
liderado por rapazes como nós, com menos de 30 anos de idade, num país
miscigenado como o nosso, ao som de rumba, mambo e bolero.
Nada poderia nos
produzir mais euforia que a noite de Ano Novo em que Fidel Castro entrou em
Havana e tomou o poder com seus guerrilheiros barbudos. Eu tinha 18 anos e
estava nas ruas, com meus colegas da UNE e os companheiros do futuro Cinema
Novo, celebrando a vitória da beleza e da justiça, como diria Paulo Martins em “Terra
em transe”. Isso ninguém esquece. Mesmo que o sonho se transforme em pesadelo,
permanece em nossos corações na sua forma original.
Nossa
proximidade afetiva e cultural com o cinema cubano alimentou, durante anos,
nossa tolerância com o que de errado víamos acontecer na ilha. Os cineastas
brasileiros sempre tiveram a absoluta solidariedade dos cineastas cubanos
liderados por Alfredo Guevara, Tomás Gutierrez Aléa e Julio Garcia Espinoza.
Nos piores momentos da ditadura militar no Brasil, nunca nos faltaram
moralmente (apoiando nossos filmes e nossos projetos cinematográficos) e
materialmente (recebendo alguns de nós em exílio ou na escola de cinema de San
Antonio), sem nada em troca.
Mas, ao longo do
tempo, foi ficando desconfortável defender Cuba. Era como se a mulher amada
estivesse fugindo com outro, a dor de corno reprime o amor.
A agressão na
Baía dos Porcos, a desumanidade do embargo comercial, a barbárie de Guantánamo,
o terrorismo de estado (vejam “A hora mais escura”, de Kathryn Bigelow), os
cubanos presos em Miami, todos os erros e crimes da política externa americana
não podem justificar o silêncio diante da falta de liberdade, do controle da
vida dos cidadãos, da perseguição aos homossexuais, das misérias da ditadura de
Fidel Castro. Não quero viver num mundo em que seja obrigado a escolher entre
dois males. Prefiro continuar sonhando.
Em dado momento,
a União Soviética se ocupou de Cuba, garantindo sua sobrevivência ao embargo.
Com isso, o regime pôde investir correta e fartamente em educação e saúde, com
resultados gloriosos. Mas de que serve ser alfabetizado se não posso ler o que
bem entender? De que serve estar fisicamente bem se não posso levar meu corpo
para onde bem quiser?
Quando a União
Soviética desmoronou, deixando Cuba à deriva, o regime cubano tentou resistir
por sua própria conta e o resultado foi um período de extrema miséria, cujas
consequências eram o desejo de fuga em massa da população e o endurecimento do
regime para conter o desagrado geral. Aí começou a história de Yoani Sánchez.
Embora não seja
nenhum Hermano Viana (um dos meus heróis do pensamento contemporâneo), uso a
web com alguma frequência. Mas não tenho muita paciência, concentração e
habilidade para estar acessando os muitos blogs interessantes ou que poderiam
vir a me interessar. Não é que eu subestime a tecnologia, a tecnologia é que me
superestima.
Assim, nunca li
uma só linha do blog de Yoani Sánchez, o Generácion Y. Mas, independentemente
do que pudesse achar dele e dela, todos devem ter o direito de se manifestar
pacificamente, em qualquer país ou circunstância, mesmo que sejam agentes do
demônio (em Cuba, agentes da CIA são presos ou talvez fuzilados, não é provável
que recebam passaporte). Essa é aliás uma grande contribuição da internet à civilização
— ser quase incontrolável.
Aí a moça vem ao
Brasil e é recebida a pedra e pau. Como relataram os jornais, as TVs e o
próprio senador Eduardo Suplicy, puxaram-lhe os cabelos, jogaram-lhe objetos,
bloquearam sua locomoção, impediram que se projetasse o filme de Dado Galvão em
que ela aparece (nem sei direito do que trata o filme, mas é uma pena que
nossas associações de classe cinematográfica não se tenham manifestado a
propósito dessa censura informal e selvagem contra um cineasta brasileiro).
Os
manifestantes, que também têm o direito de dizer o que quiserem, preferiram
fazê-lo a cassetete, lembrando vulgares policiais da repressão. Como disse o
senador Suplicy, deviam ter tido mais coragem de ouvir.
É evidente que a
autorização do governo cubano para que Yoani Sánchez viajasse, depois de suas
20 tentativas fracassadas, é sinal de um processo de abertura política gradual
e de lenta transformação econômica. Estranho é que brasileiros sectários,
supostamente em defesa de Cuba, provoquem uma reação que só faz prejudicar esse
projeto de novos rumos no horizonte político do país.
Impedir pela
força que a blogueira se manifeste, pondo em risco sua integridade física, não
é só inaceitável gesto de intolerância, como também um golpe traiçoeiro nesse
projeto de reaproximação de Cuba com a democracia, em convivência com o resto
do mundo. É isso o que deviam desejar aqueles que ainda têm Cuba no coração.
Cacá Diegues é
cineasta carlosdiegues@uol.com.br
Em
tempo, uma nota: foi Cacá Diegues quem criou a expressão “PATRULHAS
IDEOLÓGICAS”...
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