sábado, 25 de novembro de 2017

Sobre racismo: ENTREVISTA de CÉSAR BENJAMIN ao jornal Estado de São Paulo, 21/11/2017




ENTREVISTA de CÉSAR BENJAMIN ao jornal Estado de São Paulo, 21/11/2017



– O senhor causou uma grande polêmica com o movimento negro por conta da sua última postagem. O senhor esperava toda essa repercussão?

– Faço esse tipo de alerta sobre os perigos da racialização da nossa sociedade desde a década de 1990 e desde então sou patrulhado. O problema só se agravou. Hoje leio nos jornais, rotineiramente, expressões como “o escritor branco Fulano de Tal”, “o cineasta negro Beltrano”, “o professor Cicrano, branco”. Naturalizamos a divisão racial dos brasileiros. Ninguém mais reage. Dizer que os brasileiros mudam de calçada quando veem uma criança negra na rua é uma ofensa ao nosso país. Essa histeria tem que ser contida. Alguém tem que dizer que isso é mentira.

– O que, exatamente, o senhor quis dizer quando afirmou que a "racialização do Brasil foi uma criação do Departamento de Estado dos Estados Unidos"?

– Há muitos anos amigos gaúchos pediram-me que os recebesse no Rio de Janeiro e os acompanhasse em uma reunião que teriam na sede da Fundação Ford, que ficava na Praia do Flamengo. Queriam verificar a possibilidade de obter algum financiamento para projetos de educação em áreas rurais. Fiquei chocado com o que vi. Os funcionários da Fundação disseram abertamente que só financiariam projetos que destacassem a questão racial no Brasil. Exigiram que eles mudassem todo o projeto que levaram. Estabeleci ali uma conversa tensa sobre isso. Um deles disse, para todos ouvirmos: “Temos 15 milhões de dólares e vamos provar que o Brasil é racista.” Entendi perfeitamente a mensagem.
Pensemos num computador. Ele tem um hardware, que são seus componentes físicos, mas para funcionar precisa de um software, um programa que lhe dá as instruções sobre o que fazer. Uma sociedade também tem componentes físicos, que são a sua infraestrutura, e componentes ideológicos, que organizam o comportamento das pessoas. A Fundação Ford, que é um braço do Departamento de Estado, mirou no coração do nosso software, o conceito de povo brasileiro. Acertou em cheio. Se não há povo brasileiro, o Brasil não vale a pena. Isso é parte da grande crise civilizatória que se abateu sobre nós e nos paralisa.

– O senhor acha que o Brasil é um país racista? Ou o senhor acha que vivemos uma democracia racial? Por quê?

– Há racismo no Brasil, assim como há em praticamente todo o mundo. Nunca usei e não conheço quem tenha usado a expressão democracia racial. Mas, ao contrário do que ocorre em vários outros países, o sistema de valores que a sociedade brasileira escolheu não legitima o racismo. Isso é muito importante. Um sistema de valores não descreve fielmente o que existe, mas aponta os caminhos que queremos seguir. Sinaliza uma trajetória desejada. Os americanos transformaram essa nossa grande virtude em hipocrisia. Adestraram uma geração de militantes que detesta o Brasil.

– Muitos argumentam que, em sua palestra no TED, a atriz Thais Araujo, ao dizer que as pessoas mudam de calçada quando vêm seu filho, estaria falando de forma simbólica, metafórica, sobre o racismo no Brasil. O senhor não viu desta forma?

– Eu não vi a palestra da atriz, por quem tenho grande afeto. O que me chamou a atenção não foi a palestra em si. Foi a quantidade de gente que replicou essa barbaridade nas redes sociais de forma completamente acrítica, como se fosse verdade literal: os brasileiros atravessam a rua quando veem uma criança negra. Francamente...

– As estatísticas mostram que a discriminação racial é um fato no país. Os negros são os mais pobres, os que mais morrem, os que mais são vítimas da polícia, a maior parte da população carcerária. O senhor discorda disso?

– Uma grande mentira só prospera se tiver alguma aderência à realidade. Há verdade em tudo o que você diz, embora essas estatísticas sejam, em geral, de péssima qualidade. Mas são verdades seletivas, que acabam servindo a uma grande mentira: o Brasil é o país mais racista do mundo... A maior parte da população negra foi escrava até quase o final do século XIX, há poucas gerações, e nossa mobilidade social não tem sido suficientemente grande para alterar posições historicamente constituídas. É um problema gravíssimo. Dedico minha vida a lutar contra ele. Mas a racialização não nos ajuda em nada. Só acrescenta mais um problema. E nos impede de ter uma aproximação amorosa em relação ao nosso próprio país.

– O que o senhor quis dizer com "quero que as raças se fodam"?

– O conceito de raças humanas, além de cientificamente inepto, é pérfido, é do mal. Foi criado para justificar o colonialismo e desde então só separa, destrói, discrimina, justifica desastres humanitários de grandes proporções. Eu não quero que o Brasil seja um país de “escritores brancos [ou negros]” e “cineastas negros [ou brancos]”. Quero que seja um país de escritores e cineastas.

– Como secretário de educação, que tipo de ação o senhor tem tomado para evitar a discriminação nas escolas?


– Pelo visto você foi capturada pela histeria racial, pois sua pergunta pressupõe que há discriminação em nossa rede, que você sequer conhece. Afinal, o Brasil é assim, não é? Lamento decepcioná-la, mas não conheço nenhum caso que possa confirmar isso. Nossa rede é um microcosmo do Brasil, profundamente miscigenada. Se aparecer racismo, ele será tratado como deve, como uma burrice e um crime. O racista é, antes de tudo, um burro. Achar, no século XXI, que as pessoas devem ser julgadas pela cor da pele é o fim da picada.


César Benjamin é secretário municipal do Rio de Janeiro, desde 01/01/2017

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