ENTREVISTA de CÉSAR BENJAMIN ao jornal Estado de São Paulo, 21/11/2017
– O senhor causou uma grande polêmica
com o movimento negro por conta da sua última postagem. O senhor esperava toda
essa repercussão?
– Faço esse tipo de alerta sobre os perigos da racialização da
nossa sociedade desde a década de 1990 e desde então sou patrulhado. O problema
só se agravou. Hoje leio nos jornais, rotineiramente, expressões como “o
escritor branco Fulano de Tal”, “o cineasta negro Beltrano”, “o professor
Cicrano, branco”. Naturalizamos a divisão racial dos brasileiros. Ninguém mais
reage. Dizer que os brasileiros mudam de calçada quando veem uma criança negra
na rua é uma ofensa ao nosso país. Essa histeria tem que ser contida. Alguém
tem que dizer que isso é mentira.
– O que, exatamente, o senhor quis
dizer quando afirmou que a "racialização do Brasil foi uma criação do
Departamento de Estado dos Estados Unidos"?
– Há muitos anos amigos gaúchos pediram-me que os recebesse no
Rio de Janeiro e os acompanhasse em uma reunião que teriam na sede da Fundação
Ford, que ficava na Praia do Flamengo. Queriam verificar a possibilidade de
obter algum financiamento para projetos de educação em áreas rurais. Fiquei
chocado com o que vi. Os funcionários da Fundação disseram abertamente que só
financiariam projetos que destacassem a questão racial no Brasil. Exigiram que
eles mudassem todo o projeto que levaram. Estabeleci ali uma conversa tensa
sobre isso. Um deles disse, para todos ouvirmos: “Temos 15 milhões de dólares e
vamos provar que o Brasil é racista.” Entendi perfeitamente a mensagem.
Pensemos num computador. Ele tem um hardware, que são seus
componentes físicos, mas para funcionar precisa de um software, um programa que
lhe dá as instruções sobre o que fazer. Uma sociedade também tem componentes
físicos, que são a sua infraestrutura, e componentes ideológicos, que organizam
o comportamento das pessoas. A Fundação Ford, que é um braço do Departamento de
Estado, mirou no coração do nosso software, o conceito de povo brasileiro.
Acertou em cheio. Se não há povo brasileiro, o Brasil não vale a pena. Isso é
parte da grande crise civilizatória que se abateu sobre nós e nos paralisa.
– O senhor acha que o Brasil é um
país racista? Ou o senhor acha que vivemos uma democracia racial? Por quê?
– Há racismo no Brasil, assim como há em praticamente todo o
mundo. Nunca usei e não conheço quem tenha usado a expressão democracia racial.
Mas, ao contrário do que ocorre em vários outros países, o sistema de valores
que a sociedade brasileira escolheu não legitima o racismo. Isso é muito
importante. Um sistema de valores não descreve fielmente o que existe, mas
aponta os caminhos que queremos seguir. Sinaliza uma trajetória desejada. Os
americanos transformaram essa nossa grande virtude em hipocrisia. Adestraram
uma geração de militantes que detesta o Brasil.
– Muitos argumentam que, em sua
palestra no TED, a atriz Thais Araujo, ao dizer que as pessoas mudam de calçada
quando vêm seu filho, estaria falando de forma simbólica, metafórica, sobre o
racismo no Brasil. O senhor não viu desta forma?
– Eu não vi a palestra da atriz, por quem tenho grande afeto.
O que me chamou a atenção não foi a palestra em si. Foi a quantidade de gente
que replicou essa barbaridade nas redes sociais de forma completamente
acrítica, como se fosse verdade literal: os brasileiros atravessam a rua quando
veem uma criança negra. Francamente...
– As estatísticas mostram que a
discriminação racial é um fato no país. Os negros são os mais pobres, os que
mais morrem, os que mais são vítimas da polícia, a maior parte da população
carcerária. O senhor discorda disso?
– Uma grande mentira só prospera se tiver alguma aderência à
realidade. Há verdade em tudo o que você diz, embora essas estatísticas sejam,
em geral, de péssima qualidade. Mas são verdades seletivas, que acabam servindo
a uma grande mentira: o Brasil é o país mais racista do mundo... A maior parte
da população negra foi escrava até quase o final do século XIX, há poucas
gerações, e nossa mobilidade social não tem sido suficientemente grande para
alterar posições historicamente constituídas. É um problema gravíssimo. Dedico
minha vida a lutar contra ele. Mas a racialização não nos ajuda em nada. Só
acrescenta mais um problema. E nos impede de ter uma aproximação amorosa em
relação ao nosso próprio país.
– O que o senhor quis dizer com
"quero que as raças se fodam"?
– O conceito de raças humanas, além de cientificamente inepto,
é pérfido, é do mal. Foi criado para justificar o colonialismo e desde então só
separa, destrói, discrimina, justifica desastres humanitários de grandes
proporções. Eu não quero que o Brasil seja um país de “escritores brancos [ou
negros]” e “cineastas negros [ou brancos]”. Quero que seja um país de
escritores e cineastas.
– Como secretário de educação, que
tipo de ação o senhor tem tomado para evitar a discriminação nas escolas?
– Pelo visto você foi capturada pela histeria racial, pois sua
pergunta pressupõe que há discriminação em nossa rede, que você sequer conhece.
Afinal, o Brasil é assim, não é? Lamento decepcioná-la, mas não conheço nenhum
caso que possa confirmar isso. Nossa rede é um microcosmo do Brasil,
profundamente miscigenada. Se aparecer racismo, ele será tratado como deve,
como uma burrice e um crime. O racista é, antes de tudo, um burro. Achar, no
século XXI, que as pessoas devem ser julgadas pela cor da pele é o fim da
picada.
César Benjamin é secretário municipal do Rio de Janeiro, desde 01/01/2017
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