domingo, 19 de novembro de 2017

OS TIRANOS SÃO SEMPRE RIDÍCULOS



OS TIRANOS SÃO SEMPRE RIDÍCULOS




Conheci Flávio Morgenstern, em meio às manifestações de 2013, ele estava escrevendo Por trás da máscara e decidiu me entrevistar. Veio com uma ideia formada a meu respeito e, durante a entrevista, intrigou-se por encontrar um tipo completamente diverso do que imaginava.  A título de exemplo, consigno que ele tinha certeza de que eu apoiaria um projeto de lei que visava proibir o uso de máscaras durante as manifestações.

Expliquei que não considerava o projeto bom, uma vez que, a depender do grau de repressão, mostrar o rosto poderia ser uma sentença de morte. O que vem ocorrendo na Venezuela mostra que eu tinha alguma razão. Desde aquele primeiro encontro, mantenho contato com Flávio Morgenstern, a quem me refiro como Morgan. Nunca fui à casa dele.

Ele nunca foi a minha casa, mas existe alguma identidade em nossas preocupações, muito embora haja muitas divergências em nossas convicções. Conheço Caetano Veloso há muito mais tempo. Não pessoalmente, mas pelas músicas. Lembro também de um programa que, durante um período, ele fez com Chico Buarque, na televisão. Eu não perdia um.

Acredito que foi a primeira vez que vi tantos abraços e beijos entre dois homens. Caetano sempre foi sinônimo de ousar. Nos últimos meses, Caetano ganhou protagonismo (ainda mais) em um tal movimento contra a censura às artes. Primeiro, indignou-se contra protestos referentes a uma exposição em Porto Alegre; depois, indignou-se com relação às objeções a uma exposição em Belo Horizonte; por fim, indignou-se contra os protestos referentes à performance de um homem nu, em São Paulo.

O conceito de censura é algo vago. A repulsa popular pode ser considerada censura? Asfixiar a repulsa popular também não seria uma forma de censurar? Ou seria censura apenas um ato institucional, governamental, que cerceia a sociedade civil com relação as suas muitas manifestações artísticas, políticas e individuais? Pobre de quem almeja encontrar respostas categóricas a essas indagações, seja na doutrina, seja na jurisprudência.

Quem ousar buscar essas respostas, findará como Nekhludoff, o protagonista do imbatível Ressurreição de Tolstoi. Para quem não sabe, Nekhludoff leu todos os grandes criminólogos de sua época, para tentar descobrir o que, afinal, legitimaria o fato de um homem punir um outro homem. As perguntas sem respostas absolutas fazem parte da aflição de Ser Humano.Pois bem, eis que Caetano passou a liderar movimento que, em sua visão de mundo, entendeu que fixar indicação etária feriria a liberdade de expressão.

Concepção claramente adotada pelo tradicional programa global Fantástico.Ocorre que a maior parte da população, corretamente ou não, preferiu apoiar a agora famosa Dona Regina, entrevistada pela própria Rede Globo de Televisão. Dona Regina, quando indagada sobre o homem nu, disse não haver problemas, que respeitava a arte, mas que uma criança não poderia ser exposta àquilo. Aquilo, em sua fala figurada, seria o pênis do artista. Toda ação tem uma reação, ao tentar censurar o que entendeu como censura do povo, Caetano estimulou os novos artistas. Alguém tem dúvidas de que a criação de memes na internet é uma nova forma de arte? Ou comprarão a versão elitista de que apenas as charges publicadas pelos grandes jornais o são?

Os artistas do MBL criaram memes, satirizando o fato de Caetano defender ser arte a criança tocar o homem nu e, claro, como todo bom chargista, os artistas do MBL vincularam suas sátiras a episódio conhecido do passado de Caetano, episódio, aliás, jamais negado. Caetano, aos 40 anos, desvirginou sua ex-esposa, quando esta tinha apenas 13 anos. Hoje, o Código Penal prevê tal situação como estupro de vulnerável.

Quando os fatos ocorreram, também eram previstos como estupro, pois a violência era presumida. O que é praticamente desconhecido por quem não é da área jurídica é que havia uma causa extintiva de punibilidade, consistente no casamento do ofensor com a ofendida. Caetano casou com Paula. Caetano não leu o ECA, ao dizer que impedir crianças de interagirem em espetáculos com nudismo seria censura. Os meninos do MBL não foram conferir se o Código Penal da época extinguia a punibilidade de quem se casava com menor de 14 anos desvirginada.

Caetano decidiu processar o MBL, por ter pego sua imagem e sobreposto à do artista nu, rodeado por crianças. Invadiu-me a seguinte dúvida: se a cena do ator com as crianças não era problemática, por que considerou ofensivo ver sua própria imagem mesclada à dele? Pois bem, ao saberem do processo de Caetano contra o MBL, muitos internautas começaram a se manifestar. Não sei dizer quem foi o primeiro, de quem foi a ideia, mas um hashtag ligando Caetano à pedofilia ganhou os pódios do Twitter.

Parece contraditório, mas a vida virtual é uma realidade. Na era digital, twitaços são espécie de protesto. Caetano não percebeu, mas ao caçar o criador do hashtag estava, analogicamente, proibindo os manifestantes de usarem máscaras. Ele buscava (busca), como todo aquele que se julga intocável, identificar (e punir) quem ousou contestá-lo. A hashtag que Caetano tomou como um ataque a sua pessoa, na verdade, não foi um ataque a sua pessoa, foi um movimento de protesto à censura aos artistas do MBL.

Nesse sentido, Caetano (que odeia censura) também deveria ter participado do twittaço. As notícias são no sentido de que Caetano ajuizou uma ação de reparação de danos morais em face de Morgan, por atribuir a ele o início da manifestação. O rico, poderoso e consagrado cantor exige R$ 200.000,00 (duzentos mil reais) do jovem escritor. Na petição inicial, segundo uma das reportagens, Caetano requer que o feito tenha trâmite preferencial, em virtude de ser idoso.

O pleito, formalmente, tem alicerce na lei. O direito a movimentar o Poder Judiciário, por óbvio, está constitucionalmente assegurado, independentemente do mérito da pretensão. Mas é curioso, quase triste, saber que quem já representou a vanguarda tenha decidido discutir arte, protesto e manifestação do pensamento nos Tribunais! Esperava de Caetano uma música a Morgan, não um processo. Quem não se lembra da liderança horizontal nas manifestações de 2013?

Diferentemente do Fora Dilma e do Fora Temer, o levante de 2013 foi convocado pelas redes sociais, sem líderes definidos ou identificáveis. Como apontar quem foi o primeiro? Qual a importância em saber quem foi o primeiro? O “ir para a rua” encarnou um sentimento de revolta generalizada. Caetano, que em Podres Poderes, pretendeu cantar afinado com Ellis, deveria ouvir a própria retórica e perceber, antes que seja tarde, como é de antanho levar os manifestantes de hoje e os artistas de hoje às barras das Cortes. O artista que agora se vale do Estatuto do Idoso já sustentou e sustenta que a arte e os protestos devem ser respeitados mesmo (e principalmente) se desagradarem. É disso que estamos falando!

Os memes são charges, os hashtags são protestos. Hão de ser tolerados, ainda que desagradem. Em meio ao processo de impeachment, meus alunos fizeram vários protestos, até um jogral com enterro da Constituição Federal ocorreu em meio a uma de minhas aulas. Claro que não concordei com eles. Formalmente, eu poderia tê-los impedido, poderia até ter dado início a uma sindicância, bem ao gosto das perseguições totalitaristas. Mas eu recebi o jogral, os cartazes, até mesmo o caixão de defunto posicionado sobre a velha mesa do professor como uma audaciosa manifestação artística e, confesso, fiquei até feliz em ter, em alguma medida, movimentado um pouco a Universidade brasileira tão monocromática.


Quando um blog publicou uma charge minha nua, com seios caídos sendo chupados por Dr. Hélio Bicudo, advogados se voluntariaram a defender nossa honra. Lembrei do Charlie Hebdo e percebi como um tal processo seria carente de qualquer sentido. Caetano já disse que não irá à audiência de conciliação. Está muito ofendido, qualquer diálogo seria impensável! Que pena, deveria trocar dois dedos de prosa com Morgan. São dois poetas, comporiam Contraponto juntos. Ellis, eternamente jovem, deve estar rindo muito de tudo isso.

ARTIGO de JANAÍNA PASCHOAL , 13/11/2017







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