sábado, 28 de maio de 2016

Como podemos interferir na banalização da violência contra a mulher? - Paulo Ghiraldelli





Como podemos interferir na banalização da violência contra a mulher?



Nos anos oitenta a ideia de que o Brasil iria passar por dificuldades por conta da “sexualidade precoce” induzida, veio pela esquerda. Marta Suplicy lançou essa tese em um Roda Viva, da TV Cultura. E mais: culpou a Xuxa por estar provocando esse adiantamento nas meninas e meninos.

Agora, a tese vem pela direita, e com agravantes. Lobão relançou a ideia da seguinte forma: o Brasil é uma “fábrica de putinhas”, e isso advém da sexualidade precoce, produzida na família. O resultado, então, para ele, é que com isso as meninas e moças ficam vulneráveis ao estupro. Parece que em termos de sexo e violência, mesmo os que gostam de ouvir direita e esquerda, deveriam ficar precavidos. Esse pessoal já não tem nada a dizer em política, quanto mais sobre sexo e violência!
Não tardou em aparecer um jornal de TV adepto da tese do Lobão. Ressaltou uma jornalista: a adolescente que foi vítima de abuso por trinta homens foi mãe aos treze anos. Não sei se é verdade. Isso pouco importa. Mas, para a jornalista, importou. Ela sublinhou esse trecho na sua fala, quase como dizendo: trata-se de sexualidade precoce e, portanto, vulnerável ao estupro.
A tese do Brasil como “fábrica de putinhas” (ou qualquer outro lugar) não tem a ver com machismo diretamente. Tem a ver com algo bem mais amplo. Muito mais amplo, que o feminismo teima em desconsiderar. Explico.
Lembram-se do garoto que ateou fogo no indio em Brasília? Quando perguntado as razões do ato, ele simplesmente disse: “eu não sabia que era um índio, parecia um mendigo”. Ora, muitos jovens quando perguntados pela razão pela qual agrediram uma menina na rua, não titubeiam em dizer: “ora, parecia uma puta”. Mendigo ou puta são nomes, entre outros, que dão aval para a degradação. Desnuda-se aí o fio do novelo de uma semântica que abre as possibilidades para o ataque sem culpa. Aquilo que é entendido como um nada, como o descartável, o lixo, é rapidamente aceito como o que pode ser tratado como o que é o descartável, o lixo.
Nosso trabalho, portanto, não é o de fazer campanhas do tipo “não mereço ser estuprada” ou “contra a cultura do estupro” ou coisa parecida. Essas campanhas, já disse em outro artigo, só aguçam o ódio social porque favorecem o aparecimento de políticos inescrupulosos e feministas tresloucadas que querem resolver os problemas apelando para a pena de morte ou castração e outros métodos cuja única utilidade mesmo é o de alimentar o ego dos ofendidos de sempre, que em geral nem mesmo foram ofendidos.Perde-se em pedagogia, justiça e civilidade. O bom trabalho para o combate da violência, em especial a violência doméstica e o estupro, é localizar os campos semânticos que estão postos de uma tal maneira em nossa conversação que autorizam a degradação.
“Puta”, “mina”, “vagabunda” e coisas dos tipo precisam ser pronunciadas para dar o aval ao agressor. Nenhum agressor comum está isento de algum senso moral. Nem mesmo os nazistas haviam perdido seu senso moral. A atrocidade ocorre pela permissão semântica. Se olho para uma mulher e vejo minha mãe ou minha irmã ou uma tia querida ou uma professora que me ajudou etc., essa mulher tem menos chance de cair na vala do campo semântico que parece autorizar a atrocidade. Cada sociedade tem o seu vocabulário próprio que abre as possibilidades para que “homens de bem” faça o mal e para que bandidos declarados ampliem o mal que inicialmente iria ser feito de modo mais brando.
A questão aí, portanto, não é de censura para criar, por vias dos desvios do “politicamente correto”, uma capa de “não me toques não me reles”, mas sim de gerar olhos e ouvidos clínicos, capazes de recolocar a semântica a favor da não-violência. A palavra “puta”, por exemplo, pode continuar como palavrão ou como versão popular do descritivo “prostituta”, isso não importa, mas o que é preciso mudar são as narrativas que envolvem “puta”. Se o “politicamente correto” vai pela palavra e proibição, a boa redescrição pega outro caminho, e o que faz é associar tal palavra, por exemplo, a narrativas em que ela não se associe de modo unilateral ao que pode ser a palavra “lixo” ou coisas como “estou pedindo para ser agredida”.
Uma sociedade começa a ser livre quando uma palavra como “puta” não tem que ser extirpada, como às vezes o feminismo faz, mas sim vista como permitida exatamente na medida em que não serve mais, se modo positivo e correto como sinônimo de “estou na vida para apanhar” ou “sou a Geni boa de cuspir”.
Essas alterações são feitas durante um longo caminho de elaboração de boas narrativas, aquelas que sabem criar sensibilidade nossa para com as palavras que, inicialmente, serviam de porta aberta para a nossa maldade. Aqui, nada como lembrar Richard Rorty: essas narrativas implicam no bom jornalismo, na literatura sábia, no ensaio filosófico de calibre, na indústria cinematográfica sedutora, na música que faz pensar etc. Os clássicos da literatura e das artes são narrativas que não evitam palavras, mas trazem uma exposição de uso delas que nos faz pensar sobre seu uso automático. Nos faz mudar. Por isso é sempre interessante, ao tentarmos mudar, aproveitar o nosso patrimônio cultural que já fornece boas narrativas e é capaz de interessantes redescrições.
Paulo Ghiraldelli, 58, filósofo.

Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/violencia-contra-mulher/

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