“O mínimo que você precisa saber
para não ser um idiota”
Por: Reinaldo
Azevedo 02/09/2013 às 5:25
É o título de uma coletânea de textos de autoria do filósofo
sem carteirinha, crachá ou livro-ponto Olavo de Carvalho (foto), lançado há
duas semanas pela Editora Record (615 páginas, R$ 51,90). Os artigos foram
selecionados e organizados por Felipe Moura Brasil, um jovem de vinte e poucos
— bem poucos — anos, que também cuida de notas explicativas e referências
bibliográficas que remetem o leitor tanto à vasta obra do próprio Olavo como à
teia de autores e temas com os quais seus textos dialogam ou polemizam. Moura
Brasil informa que a seleção obedeceu a seu gosto pessoal e à necessidade de
partilhar a sua experiência de leitor e estudioso da obra de Olavo. Esse moço é
a prova de que a inteligência e a autonomia intelectual sobrevivem mesmo aos
piores tempos. E os piores tempos podem não ser aqueles em que o amor à
liberdade é obrigado a resistir na clandestinidade — afinal, resta a esperança
no fundo da caixa —, mas aqueles em que a divergência se torna, por si, uma
violência inaceitável. Nesse caso, a própria esperança começa a correr riscos.
O livro, o que não chega a ser uma surpresa, provocou um enorme silêncio — que
é uma das formas do moderno exercício da violência.
Os leitores, no entanto,
estão fazendo a sua parte, e ele já figura em 10º lugar na lista dos “Mais
Vendidos”, na categoria “Não-Ficção”, na VEJA desta semana.
“O Mínimo…” reúne, basicamente, artigos que Olavo publicou
em jornais e revistas, inclusive nas revistas “República” e “BRAVO!”, das quais
fui redator-chefe — e a releitura, agora, em livro, me remeteu àqueles tempos.
Impactam ainda hoje e podiam ser verdadeiros alumbramentos há 10, 12, 13 anos,
quando o autor, é forçoso admitir, via com mais aguda vista do que todos nós o
que estava por vir. Olavo é dono de uma cultura enciclopédica — no que concerne
à universalidade de referências —, mas não pensa por verbetes. E isso desperta
a fúria das falanges do ódio e do óbvio. Consegue, como nenhum outro autor no
Brasil — goste-se ou não dele —, emprestar dignidade filosófica à vida
cotidiana, sem jamais baratear o pensamento. Isso não quer dizer que não
transite — e as falanges não o fustigam menos por isto; ao contrário — com
maestria no terreno da teoria e da história. É autor, por exemplo, da
monumental — 32 volumes! — “História Essencial da Filosofia” (livros
acompanhados de DVDs). Alguns filósofos de crachá e livro-ponto poderiam ter
feito algo parecido — mas boa parte estava ocupada demais doutrinando
criancinhas… Há o Olavo de “A Dialética Simbólica” ou de “A Filosofia e seu
Inverso”, e há este outro, que é expressão daquele, mas que enfrenta os temas
desta nossa vida besta, como disse o poeta, revelando o sentido de nossas
escolhas e, muito especialmente, das escolhas que não fazemos.
O livro é dividido em 25 capítulos ou macrotemas: Juventude,
Conhecimento, Vocação, Cultura, Pobreza, Fingimento. Democracia, Socialismo,
Militância, Revolução, Intelligentzia, Inveja, Aborto, Ciência, Religião,
Linguagem, Discussão, Petismo, Feminismo, Gayzismo, Criminalidade, Dominação,
EUA, Libertação e Estudo. Cada um deles reúne um grupo de textos, e alguns se
desdobram em subtemas, como a espetacular seleção de textos de “Revolução”,
reunidos sob rubricas distintas, como, entre outras, Globalismo, Manipulação e
Capitalistas X Revolucionários.
Vivemos tempos um tanto brutos, hostis ao pensamento.
Vivemos a era em que o sentimento de “justiça” ou o de “igualdade” — com
frequência, alheios ou mesmo refratários a qualquer noção de direito —
reivindicam um estatuto moralmente superior a conceitos como verdade e
realidade; estes seriam, por seu turno, meras construções subjetivas ou de
classe, urdidas com o propósito de provocar a infelicidade geral. Olavo demole
com precisão e brilho a avalanche de ideias prontas, tornadas influentes pelo
“imbecil coletivo” e que vicejam muito especialmente na imprensa — fenômeno
enormemente potencializado pelas redes sociais.
Em 2003, o jornal “O Globo” ainda publicava textos como
“Orgulho do Fracasso”, de Olavo. E se podia ler (em azul):
Língua, religião e alta cultura são os únicos componentes de uma nação que podem sobreviver quando ela chega ao término da sua duração histórica. São os valores universais, que, por servirem a toda a humanidade e não somente ao povo em que se originaram, justificam que ele seja lembrado e admirado por outros povos. A economia e as instituições são apenas o suporte, local e temporário, de que a nação se utiliza para seguir vivendo enquanto gera os símbolos nos quais sua imagem permanecerá quando ela própria já não existir.
(…)
A experiência dos milênios, no entanto, pode ser obscurecida até tornar-se invisível e inconcebível. Basta que um povo de mentalidade estreita seja confirmado na sua ilusão materialista por uma filosofia mesquinha que tudo explique pelas causas econômicas. Acreditando que precisa resolver seus problemas materiais antes de cuidar do espírito, esse povo permanecerá espiritualmente rasteiro e nunca se tornará inteligente o bastante para acumular o capital cultural necessário à solução daqueles problemas. O pragmatismo grosso, a superficialidade da experiência religiosa, o desprezo pelo conhecimento, a redução das atividades do espírito ao mínimo necessário para a conquista do emprego (inclusive universitário), a subordinação da inteligência aos interesses partidários, tais são as causas estruturais e constantes do fracasso desse povo. Todas as demais explicações alegadas — a exploração estrangeira, a composição racial da população, o latifúndio, a índole autoritária ou rebelde dos brasileiros, os impostos ou a sonegação deles, a corrupção e mil e um erros que as oposições imputam aos governos presentes e estes aos governos passados — são apenas subterfúgios com que uma intelectualidade provinciana e acanalhada foge a um confronto com a sua própria parcela de culpa no estado de coisas e evita dizer a um povo pueril a verdade que o tornaria adulto: que a língua, a religião e a alta cultura vêm primeiro, a prosperidade depois.
(…)
Retomo
Grande Olavo de Carvalho! Dez anos depois, com o país nessa areia, como ignorar a força reveladora das palavras acima? Olhem à nossa volta. O que temos senão um governo incompetente, que fez refém ou tornou dependente (com Bolsa BNDES, Bolsa Juro, Bolsa Isenção Tributária) uma elite não muito iluminada, combatido, o que é pior, por uma oposição que não consegue encetar uma crítica que vá além do administrativismo sem imaginação, refratária ao debate, que foge do confronto de ideias como Lula foge dos livros e Dilma da sintaxe?
Grande Olavo de Carvalho! Dez anos depois, com o país nessa areia, como ignorar a força reveladora das palavras acima? Olhem à nossa volta. O que temos senão um governo incompetente, que fez refém ou tornou dependente (com Bolsa BNDES, Bolsa Juro, Bolsa Isenção Tributária) uma elite não muito iluminada, combatido, o que é pior, por uma oposição que não consegue encetar uma crítica que vá além do administrativismo sem imaginação, refratária ao debate, que foge do confronto de ideias como Lula foge dos livros e Dilma da sintaxe?
O país emburrece. Eu mesmo, mais de uma vez, em ambientes
supostamente afeitos ao pensamento, à reflexão e à leitura, pude constatar o
processo de satanização do contraditório. É mais difícil travar com
intelectuais (ou, sei lá, com as classes supostamente ilustradas) um debate
racional sobre a legalização do aborto do que com um homem ou uma mulher do
povo, de instrução mediana. E não porque aqueles tenham os melhores argumentos.
Ao contrário: têm os piores. Olham para a sua cara e dizem, com certo ar de
trunfo, como se tivessem encontrado a verdade definitiva: “É uma questão dos
direitos reprodutivos da mulher”. Digamos que fosse… Esses tais “direitos
reprodutivos” teriam caído da árvore da vida, como caiu a maçã para Newton, ou
são uma construção? Por que estaria acima do debate?
Mais um pouco das palavras irretocáveis de Olavo (em azul):
Na tipologia de Lukács, que distingue entre os personagens que sofrem porque sua consciência é mais ampla que a do meio em que vivem e os que não conseguem abarcar a complexidade do meio, a literatura brasileira criou um terceiro tipo: aquele cuja consciência não está nem acima nem abaixo da realidade, mas ao lado dela, num mundo à parte todo feito de ficções retóricas e afetação histriônica. Em qualquer outra sociedade conhecida, um tipo assim estaria condenado ao isolamento. Seria um excêntrico.
No Brasil, ao contrário, é o tipo dominante: o fingimento é geral, a
fuga da realidade tornou-se instrumento de adaptação social. Mas adaptação, no
caso, não significa eficiência, e sim acomodação e cumplicidade com o engano
geral, produtor da geral ineficiência e do fracasso crônico, do qual em seguida
se busca alívio em novas encenações, seja de revolta, seja de otimismo. Na
medida em que se amolda à sociedade brasileira, a alma se afasta da realidade —
e vice-versa. Ter a cabeça no mundo da lua, dar às coisas sistematicamente
nomes falsos, viver num estado de permanente desconexão entre as percepções e o
pensamento é o estado normal do brasileiro. O homem realista, sincero consigo
próprio, direto e eficaz nas palavras e ações, é que se torna um tipo isolado,
esquisito, alguém que se deve evitar a todo preço e a propósito do qual
circulam cochichos à distância.
Meu amigo Andrei Pleshu, filósofo romeno, resumia: “No Brasil, ninguém
tem a obrigação de ser normal.” Se fosse só isso, estaria bem. Esse é o Brasil
tolerante, bonachão, que prefere o desleixo moral ao risco da severidade
injusta. Mas há no fundo dele um Brasil temível, o Brasil do caos obrigatório,
que rejeita a ordem, a clareza e a verdade como se fossem pecados capitais. O
Brasil onde ser normal não é só desnecessário: é proibido. O Brasil onde você
pode dizer que dois mais dois são cinco, sete ou nove e meio, mas, se diz que
são quatro, sente nos olhares em torno o fogo do rancor ou o gelo do desprezo.
Sobretudo se insiste que pode provar.
Sem ter em conta esses dados, ninguém entende uma só discussão pública
no Brasil. Porque, quando um brasileiro reclama de alguma coisa, não é que ela
o incomode de fato. Não é nem mesmo que exista. É apenas que ele gostaria de
que existisse e fosse má, para pôr em evidência a bondade daquele que a
condena. Tudo o que ele quer é dar uma impressão que, no fundo, tem pouco a ver
com a coisa da qual fala. Tem a ver apenas com ele próprio, com sua necessidade
de afeto, de aplauso, de aprovação. O assunto é mero pretexto para lançar, de
maneira sutil e elegante, um apelo que em linguagem direta e franca o exporia
ao ridículo.
Esse ardil psicológico funda-se em convenções provisórias, criadas de
improviso pela mídia e pelo diz que diz, que apontam à execração do público
umas tantas coisas das quais é bom falar mal. Pouco importa o que sejam. O que
importa é que sua condenação forma um “topos”, um lugar-comum: um lugar no qual
as pessoas se reúnem para sentir-se bem mediante discursos contra o mal. O
sujeito não sabe, por exemplo, o que são transgênicos. Mas viu de relance, num
jornal, que é coisa ruim. Melhor que coisa ruim: é coisa de má reputação.
Falando contra ela, o cidadão sente-se igual a todo mundo, e rompe por
instantes o isolamento que o humilha.
Essa solidariedade no fingimento é a base do convívio brasileiro, o
pilar de geleia sobre o qual se constroem uma cultura e milhões de vidas. Em
outros lugares as pessoas em geral discutem coisas que existem, e só as
discutem porque perceberam que existem. Aqui as discussões partem de simples
nomes e sinais, imediatamente associados a valores, ao ruim e ao bom, a
despeito da completa ausência das coisas consideradas.
Não se lê, por exemplo, um só livro de história que não condene a
“história oficial” — a história que celebra as grandezas da pátria e omite as
misérias da luta de classes, do racismo, da opressão dos índios e da vil
exploração machista. Em vão buscamos um exemplar da dita-cuja. Não há cursos,
nem livros, nem institutos de história oficial. Por toda parte, nas obras
escritas, nas escolas de crianças e nas academias de gente velha, só se fala da
miséria da luta de classes, do racismo, de índios oprimidos e da vil exploração
machista. Há quatro décadas a história militante que se opunha à história
oficial já se tornou hegemônica e ocupou o espaço todo. Se há alguma história
oficial, é ela própria.
Mas, sem uma história oficial para combater, ela perderia todo o
encanto da rebeldia convencional, pondo à mostra os cabelos brancos que
assinalam sua identidade de neo-oficialismo consagrado — balofo, repetitivo e
caquético como qualquer academismo. Direi então que açoita um cavalo morto? Não
é bem isso. Ela própria é um cavalo morto. Um cavalo morto que, para não
admitir que está morto, escoiceia outro cavalo morto. Todo o “debate
brasileiro” é uma troca de coices num cemitério de cavalos.
Encerro
Leia esse livro de Olavo de Carvalho. Ninguém, no Brasil, escreve com a sua força e a sua clareza. Tampouco parece fácil rivalizar com a sua cultura, fruto da dedicação, do trabalho no claustro, da aplicação, não da busca de brilharecos. Leia Olavo: contra o ódio, contra o óbvio, contra os idiotas e a favor de si mesmo.
Leia esse livro de Olavo de Carvalho. Ninguém, no Brasil, escreve com a sua força e a sua clareza. Tampouco parece fácil rivalizar com a sua cultura, fruto da dedicação, do trabalho no claustro, da aplicação, não da busca de brilharecos. Leia Olavo: contra o ódio, contra o óbvio, contra os idiotas e a favor de si mesmo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Fique à vontade para comentar...