A ESQUERDA e os EVANGÉLICOS
Entrevista do Professor Roberto Dutra
“Há
cegueira da esquerda para entender a nova classe trabalhadora”
São Paulo 5 JUN 2016
Compõem hoje a maior bancada
evangélica da história do Congresso brasileiro 75 deputados federais e três
senadores, o que faz com que, cada vez mais, suas posições e acordos tenham
relevância no cenário político. Para Roberto Dutra, doutor em sociologia pela
Universidade Humboldt de Berlim e professor da Universidade Estadual do norte
Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf), o posicionamento dos congressistas,
contudo, não deve ser confundido com as convicções do eleitorado evangélico
como um todo. Em um momento em que esse grupo político se uniu em torno do
impeachment e de teses conservadoras no campo dos costumes, Dutra avalia em
entrevista ao EL PAÍS os reflexos da interferência da religião na política e
com que olhos os fiéis enxergam isso. Leia abaixo os principais destaques da
conversa.
Pergunta. Existem hoje temas específicos que
motivam o voto do eleitorado evangélico?
Resposta. São vários temas, mas há dois eixos
temáticos que têm se destacado. O primeiro é a questão
da moral e dos costumes que, contudo, até agora foi determinante
apenas em eleições legislativas. Isso não quer dizer que essa temática não
possa se tornar central em algum momento nas executivas, mas, por enquanto, ela
depende muito mais da instrumentalização política que líderes de perfil
religioso têm feito dela. Falar de costumes tem atraído um eleitorado, mas o
que realmente explica as motivações do comportamento eleitoral, não só dos
evangélicos, mas de todas as classes populares – considerando aí que a maior
parte dos evangélicos pertence às classes populares – é o eixo do bem estar
social. A preocupação é muito mais prática: saúde, educação e programas
sociais.
P. A bancada evangélica
votou pelo impeachment de Dilma Rousseff e tem expressado apoio a Michel Temer.
Essa adesão é transferível ao eleitorado evangélico?
R. É difícil fazer uma previsão, mas eu acredito
que há uma tendência do Governo Temer tentar
usar a pauta dos costumes para fidelizar esse eleitorado evangélico mais pobre,
que, contudo, tende a se distanciar dele na medida em que ele adotar uma
política socialmente insensível de redução do gasto social. Nós não podemos
pegar um momento como esse, em que a grande polarização ideológica e cultural
leva a um fortalecimento da pauta dos costumes, e projetar isso no
comportamento eleitoral das eleições deste ano ou de 2018. O voto religioso é
circunstancial e muito mais presente nas eleições legislativas do que nas
executivas. Por isso, eu acredito que se o Governo Temer não for capaz de fazer
uma política social minimamente satisfatória do ponto de vista dessa população,
ele não vai conseguir o apoio dela.
P. E por que o discurso
moralista de políticos religiosos perde força nas eleições majoritárias?
R. Por razões próprias da política. Você
consegue angariar um número grande de votos para eleger
um deputado como o Bolsonaro, fazê-lo o mais votado. Mas na eleição do
executivo, a maior parte do eleitorado não vota por religião e é também
alimentada com informações que servem para descredenciar o perfil religioso do
candidato religioso. Foi o caso do Marcelo Crivella (PRB), que perdeu a eleição
para Governador do Rio de Janeiro de forma avassaladora para o Luiz Fernando
Pezão (PMDB). No final, a vinculação do Crivella à Igreja Universal do Reino de
Deus atrapalhou. Tanto é que dizem por aí que o Crivella está pensando em se
desvincular do PRB, aderindo a um partido não religioso. Ao contrário do que se
pensa, o eleitorado brasileiro tem bom senso. Elegemos um presidente sociólogo,
um presidente operário e uma presidenta guerrilheira. É um eleitorado que não é
tão conservador como se imagina.
P. De qualquer jeito, a
bancada evangélica tem crescido em número e importância nos últimos anos. O que
explica o crescimento?
R. A extrema facilidade com que os líderes
religiosos pentecostais lidam com as regras da política. É a capacidade dos
evangélicos buscarem a vida política através do pragmatismo. O Edir Macedo, por
exemplo, apoiou o Governo Dilma até recentemente. Se acontecesse uma improvável
volta de Dilma daqui alguns meses, não tenho dúvidas de que ele estaria pronto
para apoiá-la novamente. Também é importante dizer que é um equívoco falar em
coesão da bancada religiosa. A Igreja Universal, por exemplo, tem uma estratégia
de atuação parlamentar bem diferente da Assembleia de Deus. Só há união em
momentos específicos, como agora.
P. E não há interferência
direta de algumas igrejas no processo eleitoral?
R. Hoje há, de fato, igrejas aparelhadas. São
verdadeiras redes que grandes líderes políticos, como Eduardo Cunha,
oferecem como recurso político para outros líderes. O que vemos é que o púlpito
tem fidelizado muito para o legislativo. Mas a curiosidade é que, do ponto de
vista programático, o repertório do sucesso das eleições legislativas dos
evangélicos é um repertório corporativo. É mais algo do tipo “vote no deputado
porque ele vai defender nossa igreja” e menos “vote no deputado porque ele é contra
o aborto”. Costume e moral não são os fatos predominantes para explicar o voto.
É muito mais o sentimento de corpo mesmo, que é instrumentalizado pelos
pastores. Então, o que eu arrisco dizer é que existe, sim, um crescimento
grande da instrumentalização política das igrejas, mas isso não é uma garantia
de votos e pode, em determinado momento, virar até motivo de debandada de
fiéis.
P. Por quê?
R. Ser evangélico não é pré-requisito de voto
para o eleitorado evangélico. As pessoas observam aquilo que a mídia fala
delas, a imagem que é projetada sobre elas. Ficam preocupadas com a
interferência de líderes evangélicos na política. Se há um movimento crescente
de transformação das igrejas em curral eleitoral, por outro lado, aumenta o
sentimento de muitos fiéis de que eles estão sendo feitos de palhaços pelo
pastor. E ao mesmo tempo em que aumenta a politização conservadora da religião,
aumenta também o sentimento de que a fé das pessoas está sendo manipulada por
interesses próprios. E aí a concorrência religiosa é fatal. O Brasil está em
plena modernidade religiosa. Caso esse sentimento dos fiéis aumente, pode
surgir uma variável de dinamização do próprio mercado religioso.
P. Você identifica em
algum grupo específico esse olhar mais crítico?
R. Talvez nos jovens. Hoje há uma geração de
jovens que já pode ser chamada de “evangélicos não praticantes”. Uma coisa é
você ser convertido para uma religião evangélica, outra é você nascer nessa
cultura. Aí é natural que você olhe de modo mais distanciado. De qualquer
jeito, é importante não confundir os líderes políticos que têm um perfil
religioso – ou seja, líderes políticos que tem na religião um recurso de poder
e mobilização eleitoral – com as formas de comportamento, consciência e visão
de mundo dos evangélicos como um todo. Além disso, apesar de óbvio, é
necessário dizer que os evangélicos também são heterogêneos. De modo que há na
classe média brasileira intelectualizada e, inclusive, de esquerda, um
preconceito muito grande contra os evangélicos. Há a premissa de que eles são
burros, que eles não sabem olhar com distanciamento a pauta política do
Feliciano, do Malafaia, do Pastor Everaldo, do Bolsonaro.
P. E como esse
distanciamento da esquerda aparece de forma prática?
R. Ela não consegue ver a possibilidade de
disputar a fidelidade eleitoral e ideológica desse público. Dou o exemplo mais
forte. Um tema central na vida cotidiana dos evangélicos é a família, mas a
esquerda taxa isso de puro conservadorismo. A única alternativa política que
tem tematizado o tema da família é – em uma democracia como a nossa, e eu diria
que em várias outras também – a da direita. Ou seja, é justamente quem fala
para os evangélicos: a família corre risco porque os homossexuais, a ideologia
de gênero e os “esquerdopatas” estão ameaçando ela. Sem outra explicação,
muitas vezes o indivíduo aceita essa mesma. Assim, a identificação dos
evangélicos com a pauta política de seus líderes vem em alguns casos por pura
falta de alternativa e compreensão dos setores ditos mais esclarecidos da
sociedade que não conseguem compreender que o tema da família não é
necessariamente conservador.
P. E por que esse tema tem
tanto apelo?
R. Por razões de classe social. Os evangélicos
se dividem, basicamente, em dois tipos de classe, que eu e o grupo de
pesquisadores em
torno do sociólogo Jessé Souza, costumamos dividir como ralé estrutural e
batalhadores. O primeiro é um público completamente excluído das principais
instituições da sociedade. Em geral, eles frequentam igrejas evangélicas que
funcionam como uma espécie de pronto socorro espiritual. O segundo grupo tem
uma vida familiar e social mais estável, com vínculos sociais mais fortes. Há
uma proteção e solidariedade com que a ralé não conta. Para os dois públicos,
contudo, a ameaça familiar é uma ameaça real e constante, seja por fatores
econômicos, de alcoolismo ou de desestabilização social, como a falta de uma
moradia decente. São problemas que as classes populares e excluídas enfrentam
no mundo inteiro. Ora, só vai considerar o tema da família conservador quem não
vê no abandono um problema cotidiano. Em resumo, os evangélicos agem muito mais
por interesses práticos e que podem tomar rumos muito variados, de acordo com
os partidos políticos que interpretam esses interesses práticos, do que
propriamente por convicções conservadoras. Convicções que eles podem até ter,
mas que não são tão claras e fortes como se imagina.
P. Mas onde entram as
classes mais altas evangélicas nessa separação que você colocou?
R. Elas constituem um público mais tradicional,
não pertencente historicamente às classes hegemônicas católicas brasileiras,
que em geral faz parte das chamadas igrejas protestantes históricas ou de
missão, como as igrejas Batista e Presbiteriana que, embora tenham copiado
muitos dos ritos e das ideias das pentecostais, como Universal e Assembleia de
Deus, mantêm um estilo, digamos, mais sóbrio. O público é formado por uma
classe média ascendente com um determinado padrão de formação escolar e nível
de renda mais estável. Mas esse é um público minoritário entre os evangélicos.
P. Pode resumir a
diferença entre o protestantismo “clássico” e o pentecostalismo?
R. Ele é uma revolução protestante dentro da
revolução protestante e surge na Igreja Metodista Wesleyana. John Wesley é um
dos grandes fundadores do pentecostalismo, mas outros líderes menores
popularizam ainda mais essa religião entre os negros dos EUA no final do século
19, início do 20. Ela se caracteriza por uma crença, muito grande, na força de
Deus para mudar as coisas cotidianas. É o que podemos chamar de uma
religiosidade mágica. No Brasil, isso chega em 1910, mas é só a partir da
década de 1960, com a urbanização da pobreza, que o protestantismo brasileiro
vai tomando a cara do pentecostalismo. Qual é a diferença básica? É que o
protestantismo clássico não enfatiza tanto a presença cotidiana do espírito
santo para resolver os problemas cotidianos das pessoas. O protestante batista
não espera que Deus vá ajuda-lo a passar em um concurso público, já um
pentecostal crê nisso. O pentecostalismo é mais popular que o protestantismo
clássico. Por isso, com o tempo, vai virando a religião dos excluídos. Disso
que nós denominamos ralé estrutural. É uma religião que oferece valor social
para os excluídos: Deus tem um projeto para sua vida, você vale alguma coisa.
P. Você disse que existe
um preconceito de setores progressistas com os evangélicos. Há uma crítica de
que o PT se afastou dos mais pobres nos últimos anos, perdendo espaço para as
igrejas. Você concorda com essa avaliação?
R. Acredito que é uma explicação muito
reducionista. Eu concordo que o PT se distanciou dos pobres, mas o que
significa isso? O PT certamente não se distanciou dos pobres no sentido de
fazer políticas sociais para os pobres. No entanto, o PT se distanciou
culturalmente dos pobres. O PT é informado por uma visão de esquerda de que os
pobres devem seguir um modelo de ser e agir que vem dos moldes dos sindicatos.
Os pobres devem ser coletivistas. Os pobres devem se enquadrar em um viés de
solidarismo anti-individualista. Toda vez que o PT encontra a valorização do
indivíduo, a valorização da autonomia do indivíduo frente às intempéries da
vida, que, em resumo, é a pregação cotidiana das igrejas pentecostais, o PT aponta
o dedo acusatório: “É a pregação do individualismo, é a pregação do
neoliberalismo dentro das igrejas”. O PT não entende essa filosofia liberal
popular e nem o valor moral do individualismo que está por trás dela.
P. O que você quer dizer
com “valor moral do individualismo”?
R. É a ideia de que para ser alguém valoroso na
sociedade é preciso ser um indivíduo respeitado em sua privacidade, em seu
projeto de vida. De modo que há, de forma muito presente nas igrejas, essa
cultura da valorização da iniciativa individual. E isso não significa a negação
da solidariedade. Acredito que há uma cegueira do PT em compreender a alma e a
cultura dessa nova classe trabalhadora que não é formada no sindicato e que
hoje é a maior parte dos brasileiros pobres e remediados do país. Esse é o
distanciamento que existe, mas ele não é exclusivo do PT. A esquerda de forma
geral não entendeu que o sonho dessa nova classe trabalhadora é, muitas vezes,
ter uma empresa própria, ser um empreendedor. Há muitas semelhanças com a população
dos EUA, por
exemplo. É um liberalismo popular que não é, necessariamente, conservador.
Hoje, esses ideais liberais de autonomia e afirmação do indivíduo estão em
disputa e os conservadores têm conseguido capturá-los com mais eficiência.
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