O GOLPE É OUTRO
Programa que será imposto ao país não teria a aceitação das urnas
CÉSAR BENJAMIN – (2 de maio de 2016)
Meus amigos estranharam quando eu disse que me opunha à
aceitação, pela Câmara dos Deputados, da admissibilidade do impedimento de Dilma
Rousseff. Sempre fui crítico dos governos do PT e considero a presidente
uma figura lamentável sob todos os pontos de vista. Além disso, ao contrário do
que dizem os governistas, não creio que as regras democráticas estejam em
risco. Os motivos jurídicos para o impedimento são controversos, mas existem.
Somam-se, é claro, a motivos políticos.
Oponho-me ao processo em curso por causa dos desdobramentos
que ele terá: um governo não eleito encontrará pronta uma maioria parlamentar
qualificada – apta, pois, a alterar a Constituição –, articulada sabe-se lá de
que forma, aberta a todo tipo de negociações e ávida para repartir o novo
poder. Será um salto no escuro. O programa apresentado há pouco tempo pelo
PMDB, intitulado “Uma Ponte para o Futuro”, antecipa que diversos dispositivos
constitucionais, como as despesas obrigatórias em educação e saúde, a indexação
dos benefícios da seguridade social ao salário mínimo e o estatuto do Banco
Central, serão questionados. Também será questionada a Consolidação das Leis
Trabalhistas (CLT), pois, a depender do PMDB, os acordos diretos entre patrões
e empregados terão mais valor do que aquilo que as leis determinam. O mesmo
texto promete uma política econômica conservadora puro-sangue, sem as
ambiguidades do PT, o que inclui um corte drástico nas despesas de custeio para
obter um megassuperávit nas contas do setor público. Chega a ser difícil
imaginar o significado disso.
O golpe, em curso, não será o afastamento de Dilma Rousseff.
Será a formação de um governo comprometido com um programa que muito
dificilmente seria aceito pelo povo brasileiro nas urnas. Estaremos expostos a
um intenso fogo de barragem, com o mesmo grupo de economistas apresentando sua
versão, reiteradamente, de modo a legitimar pela imprensa alterações
constitucionais importantes, patrocinadas por um governo não eleito e
realizadas por um Congresso que já perdeu legitimidade aos olhos da população.
O impedimento mimetizará uma eleição indireta. Aqui desembocou a
esperteza política do PT e de Lula, tão enaltecida nos últimos anos. Foram
eles que se juntaram a figuras lombrosianas e lhes deram tanto poder.
Seja qual for o governo, o padrão de gastos do Estado – e,
portanto, sua relação com a sociedade – precisará ser revisto em uma dimensão
que ultrapassa muito as desastradas tentativas de ajuste que estão em curso
desde janeiro do ano passado. A atual configuração desses gastos e o nível de
consumo a que a sociedade se acostumou na última década não são compatíveis com
um crescimento econômico sustentado, com relativo equilíbrio nas contas fiscais
e externas. Empurramos o problema para frente durante alguns anos, à custa de
aumentar endividamentos. É certo que esse tempo acabou. Mas há diferentes
maneiras de lidar com a questão, não uma só.
Entre os grandes
gastos do Estado, destacam-se a seguridade social, que cuida dos pobres, e a
rolagem da dívida pública, que cuida dos ricos. Juntas, representam nada
menos que 22% do Produto Interno Bruto. Apesar de sua importância, são dois
temas em que a desinformação predomina. Vale a pena olhar para eles.
A dívida pública se aproxima dos 3 trilhões de reais. Diante
da enormidade desse número, é fácil convencer as pessoas de que o Estado é
irresponsável, gasta muito mais do que arrecada e por isso se endivida pesadamente
junto ao setor privado, sugando recursos que poderiam se destinar ao
investimento. Isso justifica os cortes draconianos anunciados, que seriam
necessários para que possamos juntar recursos para pagar essa dívida. É a
economia política da dona de casa, totalmente intuitiva. Se ela fosse
verdadeira, as faculdades de economia poderiam fechar.
Dívidas públicas existem no mundo inteiro porque são um
recurso legítimo dos Estados nacionais. Como os investimentos feitos hoje
beneficiam as gerações futuras, é justo que elas repartam os custos com as
gerações atuais. Quando bem realizados, esses investimentos estimulam o
crescimento econômico e contribuem para aumentar a capacidade de arrecadação de
tributos, equilibrando as contas num momento seguinte.
O segredo que os
economistas sabem, mas precisa ser compartilhado com todos, é o seguinte:
nenhuma dívida pública do mundo jamais será paga. Por isso, não há um
limite fixo para elas (o Japão deve 230% do seu PIB, os Estados Unidos, 104%).
Seu tamanho só é relevante na medida em que influencia os
custos e as condições de sua rolagem em cada momento. A dívida brasileira não é
especialmente alta, como percentagem do PIB (em torno de 67%), mas é muito
cara. Além disso, as trapalhadas de Dilma Rousseff aceleraram seu crescimento,
o que, de fato, inspira cuidados, pelos custos crescentes que isso acarreta.
Mas é essencial não perder de vista que dívida pública não é
igual a dívida privada. Nem os governos vão pagá-la, nem os credores, de posse
de títulos que lhes garantem ótimos rendimentos, querem recebê-la, pois ambos
precisam dela.
Os títulos públicos brasileiros são hiperindexados e recebem
generosos juros reais. Negociados diariamente, são um ente híbrido, uma dessas
jabuticabas que só existem aqui: rendem como se fossem uma poupança premiada,
mas têm a mesma liquidez da moeda. Nossa economia funciona, pois, com dois
tipos de moeda: a comum, à qual todos têm acesso e que se desvaloriza no ritmo
da inflação, e a financeira, que, além de protegida, dá lucro certo, sem passar
pelas operações da economia real. Nessas condições, será mesmo que o setor
privado financia o governo, ou ocorre justamente o contrário? Quem, afinal,
financia quem?
O problema, como se vê, não está só no nível da taxa de
juros, mas no próprio regime de política monetária que predomina no Brasil. A
rolagem da dívida, nessas condições, custa 8% do PIB, sem gerar gritarias. O
que tira o sono dos conservadores é o salário mínimo pago aos aposentados. É aí
que querem desindexar, em nome do equilíbrio financeiro do setor público,
ameaçado pelo alegado déficit da Previdência Social. Também aqui a confusão
predomina, pois há números para todos os gostos.
O grande acordo civilizatório inscrito na Constituição de
1988 foi a formação de um sistema de seguridade
com três componentes: saúde pública (amparo universal aos doentes), assistência
social (amparo a portadores de deficiência e a pessoas em situações de risco
social) e previdência (amparo aos que ultrapassaram o período de vida
laborativa). Esse sistema, que o
programa apresentado pelo PMDB quer desmontar, é o coração do pacto social
brasileiro contemporâneo. Por sua extensão, capilaridade e profundidade,
provavelmente é o principal motivo da nossa relativa estabilidade social.
Justamente por isso é caro: custa 14% do PIB.
Os dois primeiros componentes da seguridade correspondem a
direitos líquidos de cidadania. Como tal, não contam com receitas próprias,
sendo financiados pelos tributos que os constituintes criaram para esse fim (as
contribuições sociais). Não se aplica nesses casos o conceito de déficit
(ninguém diz, por exemplo, que uma escola pública, que oferece ensino gratuito,
é “deficitária”; tampouco se pode dizer isso de um hospital público ou da
assistência a uma pessoa pobre e portadora de uma deficiência grave). Só o
terceiro componente da seguridade, a previdência propriamente dita, gera
receitas próprias.
Mesmo assim, a situação financeira da seguridade oscila ano
a ano, entre déficits e superávits, conforme a conjuntura econômica do país.
Opera contra seu equilíbrio o mecanismo denominado Desvinculação de Receitas da
União (DRU), que permite ao governo não aplicar na seguridade uma parte dos
tributos que são recolhidos em nome dela. (Em 2015, o governo federal deu algo
como 160 bilhões de reais em desonerações fiscais para diversos setores do
empresariado, o que mostra uma esquizofrenia: abre-se mão de receitas com
facilidade, e ao mesmo tempo denuncia-se a existência de um déficit.)
A Previdência, especificamente, tem em torno de 33 milhões
de beneficiários, com rendimentos médios de 1.207 reais. É muito difícil prever
sua evolução, pois as variáveis decisivas para seu equilíbrio financeiro de
longo prazo não estão situadas dentro dela, mas na economia como um todo: a
evolução do emprego formal, o patamar de salários, a produtividade dos
trabalhadores ativos etc. É justo rever abusos e privilégios, onde eles
existem, e prudente adotar medidas para adaptar o sistema ao novo perfil
demográfico brasileiro – aumentando a idade para as aposentadorias, por exemplo
–, mas nada disso pode servir de pretexto para um desmonte selvagem.
Há um bom debate a ser feito, envolvendo um espectro de
posições sérias muito mais amplo do que normalmente se vê. Mas, pelo andar da
carruagem, não haverá debate nenhum. Um governo não eleito e um Congresso
desmoralizado, contando com grande banda de música, formarão um rolo compressor
sobre a cidadania, impondo mudanças regressivas no meio de uma crise social já
enorme. Não sabemos para onde isso vai nos levar.
Estamos diante de uma escolha de Sofia: se Dilma Rousseff,
por milagre, sobreviver ao impedimento, continuaremos sujeitos a um não
governo. Se Michel Temer assumir, teremos um governo hostil à construção da
nação. O problema, pois, não é que as regras formais da democracia estejam em
perigo. De certa forma, é justamente o
oposto: estamos às vésperas de um grave retrocesso social e civilizatório
tornado possível pelo desastre do PT e pelo manejo dessas regras pela
oposição.
A dimensão de longo prazo da crise atual é ainda mais grave:
o sonho do Brasil-nação, que floresceu no século XX, pode estar terminando ou,
pelo menos, sendo colocado em suspenso por longo tempo. Presos em nosso
labirinto de mediocridade, incapazes de realizar um esforço endógeno minimamente
coerente, desprovidos de forças nacionais renovadoras, caminhamos para
estacionar em nosso lugar natural no sistema-mundo, a mais extrema periferia. O
PT não consegue ver isso, pois, apesar de ter alguma sensibilidade social,
nunca pensou a nação.
A solução menos ruim é que o Tribunal Superior Eleitoral
casse a chapa Dilma–Temer, pelas ilegalidades cometidas durante o processo
eleitoral. A convocação de novas eleições propiciaria dois ganhos para o país:
a realização de um debate de grande intensidade, que ajudaria a explicitar as
questões de fundo, e a formação de um novo governo legítimo, seja ele qual for.
Precisamos deter a marcha da insensatez.
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