O paradoxo de Münchhausen do caso Lula: se o MPF
ganhar, Moro perde
22 de janeiro de 2018
Este artigo também poderia ter o seguinte título: Para
além da Lei de Münchhausen, que se ergue pelos próprios cabelos, existe a lei
da gravidade. Bom, mão à obra. Muito já se escreveu sobre o julgamento que
ocorrerá nesta quarta-feira (24/1). O caso Lula. De Ferrajoli à Zaffaroni,
passando por inúmeros juristas brasileiros, afora o livro que contou com mais
de 100 juristas pátrios.
Claro que ainda há muito a dizer. A começar pelo silêncio de
parcela expressiva da comunidade jurídica, que, para mim, se deve ao
"fator torcedor". Coisa nossa. Quando Temer foi vítima de prova
ilícita, poucos tiveram a coragem de apontar isso. Os leitores sabem que fui um dos
primeiros a denunciar as provas ilícitas contra Dilma e Lula e também as provas
ilícitas contra Temer.
Já no calor dos acontecimentos. E sobre as ilegalidades nos
pedidos de prisão de Sarney e outros. E a flagrante ilegalidade das conduções
coercitivas. Permito-me, assim, pela enésima vez, repetir meu bordão: o
Direito não deve ser corrigido por argumentos morais e políticos. O Direito tem
de resistir à moral e à política. Quem filtra a moral é o Direito e não o
contrário.
Aliás, aqui me permito dizer: estou dizendo, nada mais, nada
menos, do que disse o Corregedor de Justiça do Tribunal de Justiça na ConJur de
21.1.2018: “Juiz não pode julgar de forma ideológica, nem com os olhos
voltados para a política". Por isso, acrescento, quem vibra com gol de
mão não pode mais se queixar de mão alguma. E a Constituição Federal é o
remédio contra maiorias que não conseguem se segurar e caem no "fator
Merval Pereira", responsável pela Escala RR- Raiva-Richter: quando passa
do índice 8, a mídia treme. É o caso do julgamento de Lula. Há um terremoto no
ar.
Pois o silêncio de parcela enorme da comunidade jurídica é
cortado pelo grito de um jornalista — insuspeito por suas notórias diferenças
políticas com o PT e com a esquerda, especialmente Lula. Falo de Reinaldo
Azevedo, que vem apontando, de há muito, que mesmo contra inimigos devemos
respeitar o devido processo legal. Reinaldo e eu temos uma coisa em comum: o
conservadorismo. O meu, um conservadorismo constitucional — minha ortodoxia em
relação a Constituição Federal; o de Reinaldo, um conservadorismo político,
atento aos fatos que podem colocar por terra o cerne da democracia: o respeito
ao Estado de Direito.
Nenhum dos dois sobreviveríamos fora da democracia. Daí
nosso zelo. Por isso, Reinaldo tem feito análises melhores que parcela dos
juristas. Que silenciam sobre o caso ou que substituem o Direito por seus
juízos morais ou moralistas. Reinaldo deveria receber o título de "jurista
honorário". Porque não se comporta como torcedor.
Em programa de rádio destes últimos dias que antecedem o
julgamento, Reinaldo deixa claro o que até um jornalista sabe (mas parece que
os juristas, não): provas tem de ser
robustas. E ele disse neste link: Ministério Público acusou Lula de ter recebido
propina em três contratos. Os contratos eram da Petrobras. A denúncia (íntegra aqui) oferecida pelo Ministério Público Federal é
clara ao afirmar com todas as letras, que os recursos que resultaram no tríplex
do Guarujá derivaram de três contratos mantidos por consórcios integrados pela
OAS com a Petrobras: um para obras na Refinaria Getúlio Vargas-Repar e dois
para a Refinaria Abreu e Lima. Mas, vejam as contingências.
Moro condenou Lula, mas não por
isso. Condenou por ato de ofício "indeterminado", figura
"nova" no direito. Ou condenou "porque sim". No fundo, Moro
ignorou a denúncia. Que, na verdade, serviu mesmo para ele fixar sua competência.
E se fi(x)ou unicamente na delação de Léo Pinheiro (sobre delações servindo
como prova plenipotenciária nem é preciso mais falar — há jurisprudência do
próprio TRF-4). Pois, fixada a competência, Moro já não precisava mais do
"nexo causal Petrobras-Propinas”, tanto é que formalmente disso abriu mão
ao responder aos embargos de declaração. Vejam o que disse o juiz Sérgio Moro:
"Este juízo jamais afirmou, na sentença ou em lugar algum, que
os valores obtidos pela Construtora OAS nos contratos com a Petrobras foram
usados para pagamento da vantagem indevida para o ex-Presidente".
Bingo. Desde o início Reinado avisou sobre isso (e a defesa
também, é óbvio). Também falei sobre isso. Qual é o busílis? Simples: O que
segura(va) a competência de Moro na "lava jato" é(r)a o nexo causal
dos fatos com negócios escusos envolvendo a Petrobras. Mas, como Moro
disse o que disse nos embargos, o que fica em pé? Reinaldo (volto a
ele porque deu lição nos juristas torcedores) deitou e rolou falando desse
fato. E ele tem razão. Porque, se o MPF ganhar o recurso, quem perde é Moro
(Moro, paradoxalmente, terá que torcer contra o MPF!).
Só que Moro, ao dizer que não havia dinheiro dos contratos
da Petrobras, perde-se nas palavras. Sem dinheiro da Petrobras, cessa tudo o
que a antiga musa canta. Competência não se escolhe. Simples assim. A linguagem
é um pharmakon: remédio, veneno ou cosmético... Palavras são
lancinantes. O que Moro disse nos embargos... embarga. Bingo de novo. Palavra
é pá-que-lavra. E, no caso, os sulcos lavrados foram profundos.
Se fosse possível representar em uma frase os paradoxos da
sentença (e do processo), talvez a melhor seria a dita pela testemunha Grigóri
Vassílievitch no julgamento de Dmítri Karamázov, no clássico Os Irmãos
Karamazov, quando se discutia uma prova, a saber, o dinheiro que
desaparecera da casa da vítima, pai do acusado:
"— não vira nem ouvira literalmente ninguém falar
daquele dinheiro, até o momento em que todos começaram a falar nele".
Dostoiévski inventou a pós-verdade! Lá, n'Os Irmãos
Karamazov, como cá, no julgamento de Lula, prova é narrativa; é crença; é
pós-verdade. E esta questão é de suma importância. Por que digo isso? Simples.
Se alguém diz que o futuro do Brasil depende desse julgamento, é um exagero, é
claro. Mas, sem dúvida, se alguém afirmar que o futuro do Direito e da teoria
da prova dependem desse julgamento, terá toda a razão. Se até aqui já houve
tantos atropelos à Constituição Federal, vamos ver o que ocorrerá depois...
Vários institutos jurídicos
dependem desse julgamento. O que ensinar nas aulas sobre prova? Ensinar que
“prova é uma questão de crença, de probabilismo”? Juristas de todo o país: isto
é coisa séria. Mataremos Malatesta, Cordero, todas as teorias garantistas?
Bom, não sei como isso vai terminar. Uma coisa é certa:
Direito não pode ser substituído por argumentos morais e políticos. Parcela
considerável dos juristas (falo só de quem tem a obrigação de conhecer um pouco
de teoria da prova e devido processo legal) pode e tem o direito de odiar o réu
(neste caso ou em tantos outros). Todavia, tem de saber qual é o preço a pagar.
E tem de responder à pergunta: será que os fins justificam os meios? Será que o
Brasil vai retroceder ao inquisitivismo?
No caso Lula, independente de
outras questões que possam exsurgir, uma coisa ficou patente. Se acreditarmos
no que disse o juiz Sergio Moro nos embargos de declaração — e não temos
motivos para não acreditar no que disse — então ele mesmo tirou o chão onde
pisava. Sua competência estava pendurada, calcada, fundada na Petrobras. Se ele
mesmo disse que "este juízo não viu nada em relação à propina da
Petrobras", então ficou um vazio. Um sem chão.
Então, se Moro retirou o próprio
chão onde pisava, resta saber ser o TRF-4 fará como o Barão de Münchhausen,
quem, afundando no pântano com seu cavalo, conseguiu se erguer a si mesmo,
puxando-se pelos próprios cabelos. Só que “puxar-se a si mesmo pelos próprios
cabelos” — já que Moro retirou o próprio chão — é um paradoxo. E paradoxos são
coisas que são impossíveis de explicar. Porque, simplesmente, são... paradoxos.
A ver, pois!
Como constitucionalista, quero apenas dizer que esse
julgamento não é o Armagedom. a batalha final entre o bem” e o mal” (quem seria
um e o outro?). Para além da “lei de Münchhausen”, existe a lei da gravidade! E
o dia seguinte!
Lenio Luiz Streck é
jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do
escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.
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