SENSO INCOMUM
O pacote anticorrupção do Ministério Público e o fator Minority
Report
3 de março
de 2016, 8h00
Atuei durante 28 anos no Ministério Público do Rio
Grande do Sul e sempre acreditei que, a partir da Constituição de 1988, todos
os membros do MP deveriam atuar como guardiães da Constituição. Sugiro que
parem a leitura e leiam o Post Scriptum 1.
Sigamos. Sempre agi assim, ainda que, para o grande público,
a figura do promotor — por culpa do próprio MP — seja vista como a do grande
acusador, do caçador de bandidos, do justiceiro e por aí vão tantos epítetos
sugestivos...
Sempre mantive uma atuação pautada pela legalidade
constitucional, leitor fiel de Elias Diaz. Por assim dizer, “sou
constitucionalista, mas sou limpinho”...!
Nunca me posicionei como reserva moral da sociedade, mas como um agente
público que deveria zelar pela aplicação da lei. Este deve ser o papel de um
membro do MP em uma democracia. Em ditaduras ocorrem o inverso. Sabemos como
ocorria antes de 1988. Mas será que todos sabem que estamos em novo paradigma?
Bem, parece que, em tempos de “guerra contra a corrupção”, a
noção constitucional do papel do MP tem perdido cada vez mais seu significado. Procuradores
e promotores justiceiros querem combater a corrupção corrompendo a
Constituição. E sempre em nome de uma “boa causa”.
É nessa perspectiva que alguns agentes do Ministério Público
Federal estão apresentando uma solução facilitadora para o grave problema da
corrupção. Ao proporem as 10 medidas
anticorrupção os autores estão jogando a criança fora junto com a água
suja. Querem fragilizar direitos que foram conquistados a duras penas neste
país tristemente marcado por ditaduras ao longo de sua história. Demoramos
tanto tempo para conquistar uma Constituição democrática e agora estamos
tomando um rumo perigoso, capaz de colocar em risco os avanços.
É sempre bom lembrar que ninguém é a favor da corrupção,
salvo o corrupto. Pensando bem, nem o corrupto é a favor da corrupção
— com exceção da praticada por ele, é claro. O inferno são os outros... Da
mesma forma, ninguém é a favor da impunidade. Tanto a corrupção como a
impunidade são verdadeiras pragas que agridem a sociedade. A grande questão é a seguinte: o que estamos dispostos a sacrificar em
nome do combate à corrupção? Vamos, por exemplo, relativizar as garantias
constitucionais? Abrir mão do Habeas Corpus? Fazer valer prova ilícita?
Pois bem. Já apresentei críticas em relação a tais medidas.
Fazendo uma anamnese das medidas propostas, chego à conclusão
que o porteiro [1] do Supremo Tribunal
Federal já as declarará inconstitucionais. Mas, sigo analisando algumas
das principais “bandeiras” dessa cruzada:
Flagrante forjado:
na pressa, o pacote do MPF ataca a presunção de inocência.
Lá se vai a criança... Em vez de apresentar provas lícitas que possam comprovar
a prática de conduta ilícita de seu agente público, o Estado estará autorizado
a simular situações que permitam testar a conduta do agente. Uma proposta, além
de inconstitucional, patética. Funcionaria muito bem em regimes totalitários.
Quero testar a conduta de um agente público e, para isso, ofereço propina para
ele... O agente, sem saber que se trata de uma simples pegadinha, aceita a
propina e, logo em seguida, é preso em flagrante. Por que o Brasil demorou
tanto a ter essa ideia? O projeto do MPF pretende o quê com isso?
Teste de integridade:
aqui entra o fator Minority Report, filme
futurista em que o Estado consegue acabar com os assassinatos usando uma
divisão pré-crime. Essa divisão visualiza o crime antes de ocorrer através
dos precogs(pré-cognição, por óbvio). Ali, o culpado é punido antes
que o crime seja praticado. Pois o pacote do MPF propõe algo parecido. Trata-se
de o que chamo de "eugenia cívica". Pelo pacote, o agente público
deve se submeter a testes que apontem se é propenso a cometer crimes. Como
assim? Já existe tal ciência? Mais: e se o “teste” for positivo, será meio
idôneo de prova, ainda que o acusado a tenha produzido contra si mesmo? E será
aplicado nos concursos de juiz e procurador? E na indicação de ministros? Eles
não são agentes públicos? Seria algo como o teste de fidelidade que se vê na
televisão brasileira?
Chama a atenção a ressalva do MPF de que tal teste não pode
ser feito de forma a representar “uma tentação desmedida, a qual poderia levar
uma pessoa honesta a se corromper”. Ok. Quer dizer que quanto maior a propina
melhor para o corrupto que sem dúvida vai alegar “tentação desmedida”? Ou
existe uma “medida” da tentação “desmedida”? Então quer dizer que uma pessoa
honesta é honesta só até certo ponto? Claro, todo mundo tem um preço! Será?
Inversão do ônus da prova:
sugere o MPF o crime de “enriquecimento ilícito”, no
qual o agente é culpado caso não consiga explicar o aumento de seu patrimônio. Nítida inversão do ônus da prova.
Segundo o MPF, isso não seria inversão, mas “escolher a única explicação para a
discrepância”, com “base na experiência”. Nessa mesma linha, é proposto o
chamado “confisco alargado”, onde diante da condenação por determinados crimes
a diferença entre o patrimônio existente e aquele cuja origem foi demonstrada é
perdido. Trata-se, como o próprio MPF reconhece na justificativa, de uma
“presunção razoável” da ilicitude (sic). Sim, vocês leram corretamente: Presunção Razoável da Ilicitude! Não
sei o que é pior: condenar com base na inversão do ônus da prova ou partindo de
uma presunção?
Aproveitamento de prova ilícita:
O porteiro do STF terá muito trabalho. O pacote propõe o
aproveitamento de provas ilícitas no artigo 157 do CPP quando estas
servirem para refutar álibi, fizerem contraprova de fato inverídico deduzido
pela defesa ou demonstrarem falsidade ou inidoneidade de prova por ela produzida,
ou necessária para provar a inocência do réu. Algo como “álibi não
provado, réu culpado”. O que chama a atenção é que a nulidade somente deve
ser decretada quando servir para dissuadir os agentes do Estado, ou seja,
quando servir para orientá-los a não mais violar direitos. E eu que pensei que
o processo deveria servir ao réu! Quer dizer que, nesses casos, mesmo sendo
produzida ilicitamente o azar seria do réu?
Extensão da prisão preventiva:
o MPF quer que seja possível decretar prisão preventiva para
“permitir a identificação do produto e proveito do crime” ou “assegurar sua
devolução” ou “evitar utilização para fuga ou defesa”. Será que entendi? O
cidadão pode ser preso como forma de pressão para que devolva o dinheiro? A
prisão como forma de coação? Claro, seguem a linha da prisão para celebrar
“delação”. Adverte o MPF que “não se trata de prisão por dívida”! Claro que
não. Afinal, se permitem a ironia, sequer uma dívida foi constituída ainda!
Sequer um julgamento ocorreu! Chamando as coisas pelo nome: É uma prisão
como constrangimento, coação, simplesmente para que o acusado entregue o
dinheiro.
Informante confidencial:
pretende legalizar o denuncismo próprio de regimes
autoritários, onde as pessoas incriminam vizinhos, colegas de trabalho,
familiares, desafetos, etc., sem ter que mostrar o rosto para o denunciado
(lembram de Lon Fuller – O caso dos denunciantes invejosos?). Nem é
necessário gastar caracteres para criticar essa pretensão. Só o nome já se
delata.
Transformação da corrupção em crime hediondo:
é a ideia mágica de fazer com que a corrupção tenha uma pena
mais grave do que o homicídio em casos de desvio igual ou superior a cem
salários mínimos. Em vez de buscar soluções mágicas, apresentadas por
seguidores do direito penal máximo que acreditam que uma simples mudança na lei
— no sentido de torná-la mais rigorosa — pode mudar a realidade, não seria
melhor lutar para ampliar a democratização do nosso sistema político?
O velho punitivismo nunca foi a melhor solução... Vejam a
Inglaterra do século XVIII, que transformou o ato de bater carteiras em pena de
morte por enforcamento. No dia dos primeiros enforcamentos — em praça
pública — foi o dia em que mais carteiras furtaram. O exemplo fala por si.
Restrição de recursos e fragilização do Habeas Corpus:
com um discurso preocupado com a eficiência (sic) da
Justiça, o MPF propõe reduzir os recursos. Os argumentos são parecidos com os
do tempo da ditadura. Em nome de uma boa causa se ataca o Estado (Democrático?)
de Direito. Afinal, as alterações servirão para caçar somente os homens maus
que habitam a república. E assim o MPF retoma o argumento dos militares a favor
da restrição do habeas corpus: “estamos aperfeiçoando o sistema processual
brasileiro”.
Ora, o Habeas Corpus já foi melhor há mais de mil anos.
Sendo mais explícito: pela proposta do MPF, fica vedada a concessão do HC de
ofício; em caráter liminar; quando houver supressão de instância; para se
discutir nulidade, trancar investigação ou processo e, além disso, condiciona
sua concessão à prévia requisição de informações ao promotor natural da
instância de origem. Por que não proibir logo o Habeas Corpus?
Declaração do trânsito em julgado de ação:
decretação do trânsito em julgado em casos de recursos
manifestamente protelatórios. Num país marcado pela discricionariedade
judicial, querem que o trânsito em julgado da ação possa ser declarado
monocraticamente. Inacreditável. Não seria mais fácil propor uma PEC dizendo: o
réu será amarrado com uma pedra no pescoço e jogado na água; se flutuar, estará
absolvido; se afundar, culpado. Muito mais barato.
Ampliação dos prazos de prescrição:
ao mesmo tempo, propõem eternizar o processo. De acordo com
os procuradores, “[...] a busca da prescrição e consequente impunidade é uma
estratégia de defesa paralela às teses jurídicas, implicando o abuso de
expedientes protelatórios”. Assim, a polícia, o MP e o Judiciário poderão atuar
sem qualquer preocupação com o tempo, pois o Estado terá todo tempo do
mundo para exercer a punição. Algo “eficiente”, se não estivéssemos
falando de uma democracia.
Antecipação do cumprimento de pena:
bom, esse é o tema da moda. Como a proposta dos procuradores
é anterior à decisão do Supremo Tribunal, parece que eles venceram essa, não?
De todo modo, estamos lutando para uma virada na decisão do STF, conforme escrevi no artigo sobre a proposição de ADC.
Enriquecimento ilícito de agentes públicos:
considera-se situação de enriquecimento ilícito quando
houver amortização ou extinção de dívidas do servidor público por terceiro. O
negócio é tão surreal que se o próprio pai paga dívida de filho servidor
público endividado, pode ser processado porque é um terceiro enriquecendo
ilicitamente o rebento.
Eis aí o pacote. Se a moral corrige o Direito, minha pergunta é: quem corrige a moral?
Post scriptum 1: em defesa (prévia) da coerência e integridade de meu
discurso.
Antes que alguém venha de novo (nas redes sociais e nas
redes internas do MP isso se tornou voz corrente) com o argumento de que Lenio
Streck escreve isso porque hoje é advogado, sugiro que não se atirem de peito
aberto nessa empreitada... para não quebrarem a cara.
Não há diferença entre o Lenio MP e o Lenio pós-MP.
Todos os meus livros seguem uma linha antidiscricionária,
garantista e social. Mesmo em questões, digamos assim, mais conservadoras,
sempre a Constituição esteve presente (por exemplo, na questão de a CF conter
mandados de criminalização).
Alguns pontos que mostram L=L: [LENIO MP =LENIO PÓS-MP]
na revisão constitucional de 1993, defesa intransigente de
uma revisão restrita (escrevi um livro sobre isso);
propus durante anos a proibição do uso de antecedentes no
plenário do júri (e assim agi), porque o direito penal é do fato e não do
autor;
rejeição do in dubio pro societate, por não ser
um princípio;
combate ao moralismo;
fui um dos primeiros a introduzir Ferrajoli explicitamente no processo criminal; defendi sempre a secularização do Direito;
mais: o garantismo explicitado no livro sobre Interceptações
Telefônicas e no livro sobre o Júri; e em Criminologia e
Feminismo, escrito com Alessandro Barata; e em Hermenêutica em
Crise (com 15 edições e tiragens), etc. Fiz a primeira arguição de
inconstitucionalidade difusa em outubro de 1988 para afastar o processo
judicialiforme;
primeiro a sustentar que a lei da sonegação fiscal devia ser
usada a favor de quem comete crime de furto (isso em 1990), tese acatada no
TJ-RS;
pena abaixo do mínimo — uma das teses que ajudei a
sustentar junto com a 5ª Câmara;
sustentei a tese de
que a majorante do roubo por concurso de pessoas (1/3) devia ser usada a favor
dos réus em crime de furto qualificado;
sustentei, pioneiramente, a inconstitucionalidade da
reincidência (acórdão do desembargador Amilton); como procurador, em mais
de 80% dos processos em que oficiei, sustentei teses garantistas, a maioria
vitoriosas a favor dos acusados (não que isso fosse bom ou ruim, mas porque era
de lei);
presente, em todos os pareceres, a filtragem
hermenêutico-constitucional;
as seis hipóteses de minha teoria da decisão foram criadas
ainda como procurador;
propus que o MP levasse ao PGR a feitura de uma ADC no caso
da progressão de regime, para evitar que apenas alguns réus recebessem o
benefício da progressão nos crimes hediondos;
aliás, sempre defendi a progressão;
quando nem a OAB se dera conta, sustentei, em comandita com a 5ª Câmara do TJ-RS, que todos as ações penais em que o interrogatório fora feito sem a presença de advogado eram... nulos (na época, o STJ anulava as nossas anulações sob o argumento de que CPP não exigia isso — quer dizer, obedecia-se o CPP e não a CF!);
fui pioneiro em criticar o pan-principiologismo...[ ideia de que "princípios" valem mais do que NORMAS jurídicas]
Posso fazer uma lista que
levaria algumas páginas. Meus companheiros de 5ª Câmara criminal do TJ-RS
(Amilton, Aramis, Genaceia e Gonzaga Moura podem falar sobre isso). Portanto,
quem quiser entrar nessa seara de falácia ad hominem, chegará
tarde. Para registro, minha defesa do poder investigatório do MP está em textos
e livros... da década de 90 e, interessante, como advogado, continuei a
defender essa tese. Sem esquecer as orientações de mestrado e doutorado sobre a
defesa ortodoxa da CF, com dois prêmios Capes na algibeira.
Post scriptum 2: A relativização dos princípios e da Constituição
Fico muito preocupado com discursos nas redes sociais apoiando teses tipo “relativização dos princípios constitucionais” em nome da segurança pública e do combate à impunidade. Já se fala até do uso da tortura. Diz-se até que o único princípio intocável é o de não ser escravizado. Tudo para sustentarem que o STF acertou na decisão da presunção da inocência. Se os ministros do STF lerem e verem o que está nas redes sociais, mudarão seu voto, porque ficarão assustados com os “apoios”.
Fico muito preocupado com discursos nas redes sociais apoiando teses tipo “relativização dos princípios constitucionais” em nome da segurança pública e do combate à impunidade. Já se fala até do uso da tortura. Diz-se até que o único princípio intocável é o de não ser escravizado. Tudo para sustentarem que o STF acertou na decisão da presunção da inocência. Se os ministros do STF lerem e verem o que está nas redes sociais, mudarão seu voto, porque ficarão assustados com os “apoios”.
O que quero dizer é que estou
muito preocupado com o rumo que o Direito está tendo no país. Estamos esticando
demais a corda. O moralismo pode nos arrastar para o abismo, rompendo o pacto
da modernidade.
Por isso, meu brado: Acorda,
comunidade jurídica. Não “a corda” (para enforcar alguém), mas “acorda”!
1 Escrevi em um jornal que até o
porteiro... e recebi críticas, porque estaria menosprezando o porteiro.
Incrível como tem gente que, em nome da linguagem PC[POLITICAMENTE CORRETA] ,
acha “pelo em ovo”.
Lenio Luiz
Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em
Direito. Sócio do Escritório Streck, Trindade e Rosenfield Advogados
Associados:www.streckadvogados.com.br.
FONTE: http://www.conjur.com.br/2016-mar-03/senso-incomum-pacote-anticorrupcao-mpf-fator-minority-report
NOTA PESSOAL do BLOG: (Jorge, o da Viriato, 02/12/2016)
Este artigo foi escrito em março de 2016 a respeito das MEDIDAS CONTRA A CORRUPÇÃO recém-votadas no Congresso, agora em NOVEMBRO. Pelos argumentos do autor do artigo, as tais MEDIDAS VIOLARIAM a CONSTITUIÇÃO e o DIREITO PENAL BRASILEIROS. E mais: as medidas contra a corrupção estabeleceriam, na prática, um virtual REGIME DE EXCEÇÃO, em que a pretexto de COMBATER A CORRUPÇÃO, nossas liberdades correriam RISCO.
Talvez a pessoa diga: "Ah!, EU NÃO SOU POLÍTICO, EU NÃO SOU CORRUPTO!"
OK! Mas lembraria aqui a frase de um escritor latinoamericano :
" A LEI é COMO SERPENTE, só PICA OS DESCALÇOS" .
(Você se acha um "CALÇADO", bebê?)
" A LEI é COMO SERPENTE, só PICA OS DESCALÇOS" .
(Você se acha um "CALÇADO", bebê?)
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