terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Educação e projeto nacional -Cesar Benjamin


Educação e projeto nacional
 César Benjamin





Foto antiga de César Benjamin

1.               Os economistas ganharam uma centralidade abusiva no debate contemporâneo, ao mesmo tempo em que sua visão se tornava cada vez mais estreita. Se o território do Brasil fosse outro, nada mudaria nos modelos que usam, pois eles ignoram o espaço. O longo prazo – a verdadeira escala temporal em que as nações se constroem – foi substituído pelo tempo curto das operações financeiras. E as pessoas, quando muito, tornaram-se meros coadjuvantes, na condição de força de trabalho ou de consumidores. É um pensamento pobre, que esquece as múltiplas dimensões da sociedade e destaca apenas o que afeta os negócios.

Tal contexto contamina também o debate sobre educação. Falamos muito no papel da educação no crescimento econômico, quando deveríamos fazer a abordagem inversa. Pois economia é meio, educação é fim. O aumento da capacidade produtiva só tem sentido se criar condições materiais para as pessoas se libertarem de uma existência estreita, repetitiva e cansada, de modo a poder se dedicar, cada vez mais, a obter conhecimentos, prazer estético e transcendência, atividades humanas por excelência, que em grande medida dependem de aprendizado. 

Um povo que alcança alto padrão educacional e cultural também é mais capaz de edificar uma economia moderna e produtiva, é claro, pelo simples fato de que esse tipo de economia é uma das expressões de certo grau de civilização. Mas isso não é o mais importante. Quando a demanda por educação ganhou força no mundo moderno, essa correlação ainda não era sequer cogitada.

2.               A proposta de dar educação formal a toda a população é uma extravagância das sociedades contemporâneas, quando comparadas às que existiram na pré-modernidade. Nenhuma sociedade anterior havia disseminado essa prática, nem mesmo a Grécia clássica, cuja herança cultural nos marcou tão profundamente. A educação formal sempre foi restrita a pequenas elites ou a grupos fechados, especialmente os religiosos.

Na Europa, centro do moderno sistema-mundo, essa mudança envolveu diversos acontecimentos e processos. Podemos vê-la despontar já na Reforma Protestante, com a ideia de que todo cristão deve ser alfabetizado para poder ler a Bíblia. Ela amadurece intelectualmente no século XVIII, durante o Iluminismo, quando se fortalece a ideia de refundar a sociedade sob o predomínio da razão, em vez da tradição. Rousseau, fazendo a crítica a Hobbes, destaca o papel fundamental da educação. 

Hobbes havia proposto um modelo histórico estilizado para explicar como e por que a humanidade deixara para trás o estado de natureza, marcado pela luta de todos contra todos em busca do próprio prazer, e ingressara no estado civil, no qual a vida social é regulada por instituições estatais. Para ele, a própria dinâmica do estado de natureza conduz a esse salto, pois a luta sem fim acaba por se tornar desvantajosa para todos. A paz se impõe como necessidade primeira. Por isso os indivíduos – que, em Hobbes, se movem a partir dos sentimentos do desejo e do medo – são levados a renunciar à liberdade e a reconhecer um poder disciplinador, o Leviatã, que se impõe pela força, a qual institui o direito. 

Rousseau critica essa formulação. Para ele, ceder à força é um ato de necessidade e prudência, de modo que o “direito do mais forte”, de Hobbes, lhe parece uma expressão sem sentido: a força cria situações de fato, mas não estabelece o direito. Como o retorno ao estado de natureza é impensável, impõe-se a necessidade de buscar outro fundamento para a vida em sociedade, de modo a torná-la compatível com a liberdade. Problema difícil, talvez insolúvel, que continua atual. 

Para resolvê-lo, Rousseau propôs que liberdade é obediência espontânea às leis que expressam a vontade geral, “a razão em sua dimensão prática”. Kant retomou esse caminho ao tratar do imperativo categórico: a condição para uma sociedade livre é que os homens, agindo livremente, aceitem limitar a própria liberdade.

Isso exigia formar homens dotados de sentimentos muito mais amplos e mais complexos que o desejo e o medo primitivos, de Hobbes. Daí a importância da educação, considerada desde então como condição para que possa existir uma convivência, ao mesmo tempo, regulada e livre. 

3. As condições políticas para realizar a revolução educacional na Europa demoraram a chegar. Surgiram, paradoxalmente, a partir de uma mudança no modo de fazer a guerra. Até o fim do século XVIII, as guerras europeias eram travadas por exércitos profissionais, formados por mercenários a serviço de imperadores, príncipes, duques e barões. Logo depois da Revolução Francesa, a nobreza europeia lançou suas tropas mercenárias contra a jovem República. Elas chegaram vitoriosas às portas de Paris, levando os revolucionários a convocar um alistamento geral – “levée en masse” – para formar um exército de cidadãos. Quinhentos mil franceses foram alistados. Não eram soldados profissionais, mas inverteram o curso da guerra.

Napoleão Bonaparte herdou essa experiência. Formou grandes exércitos de massas e com eles alterou profundamente a geopolítica continental. Terminadas as guerras napoleônicas, as nações europeias não podiam mais se defender e sobreviver se não contassem com infantarias extensas. A época da guerra mercenária chegara ao fim. Agora, o desafio era formar exércitos de cidadãos, muito maiores. Ele continha uma premissa: formar cidadãos. 

Para isso, a Europa generalizou dois grandes processos no século XIX. O primeiro foi a supressão dos direitos feudais remanescentes, o que incluiu, em muitas regiões, reformas agrárias. O segundo foi a criação dos sistemas de educação de massas. Pois a consolidação das nações modernas pressupunha a existência de grandes contingentes humanos dotados de um novo tipo de identidade, a identidade nacional. Para afirmá-la, os Estados nascentes ou em via de consolidação criaram instituições voltadas a unificar as línguas, descobrir e disseminar uma literatura, elaborar e contar a história de um passado comum, difundir a ideia de direitos e deveres, e assim por diante.
Isso não se fez sem debate. Na época, muita gente defendia que educação para todos era uma miragem, um sonho inconsequente, pois educação formal é um processo prolongado, difícil e caro. 

Não fazia sentido imaginar que todos coubessem nele. Depois, quando a nova ideia se afirmou, outras vozes se levantaram para defender a criação de sistemas diferenciados, lembrando que a grande maioria das pessoas estava destinada, desde cedo, ao trabalho manual nas minas, nas fábricas e na agricultura. Só uma pequena minoria participaria do mundo da administração, da direção, do planejamento. Os sistemas educacionais deveriam incorporar essa desigualdade de facto, oferecendo a todos uma educação compacta, rápida, básica, elementar, e a alguns, uma educação completa, voltada a um domínio mais amplo da cultura e da técnica. 

Numa Europa convulsionada por lutas sociais prevaleceu a ideia mais ousada e mais progressista: oferecer educação para todos em instituições estatais planejadas para disseminar uma base cultural comum, tendo em vista constituir e consolidar “comunidades imaginadas” – as nações – bem maiores e mais complexas que as comunidades tradicionais. 

Em vários casos, de muitos povos era preciso fazer um só. Mazzini viu bem o problema. Logo depois da unificação política da península italiana, em 1870, escreveu: “Fizemos a Itália. Agora precisamos fazer os italianos.” 

Nascem nesses contextos os sistemas públicos de educação de massas, instituições dos Estados nacionais. 

4.               O Brasil não acompanhou nenhum desses processos, nem mesmo remotamente. Nossa agenda do século XIX foi outra: na primeira metade, o jovem Estado brasileiro cuidou, antes de tudo, de preservar a unidade territorial contra as fortes tendências à fragmentação do país; na segunda, tateamos para realizar uma abolição “lenta, gradual e segura” da escravidão, de modo a não desarticular a economia primário-exportadora baseada na grande propriedade. 

Na época em que a Europa universalizava a escola pública, o Brasil não saiu do lugar. Nossa tradição já não era boa: em contraste com as colônias da América espanhola, a América portuguesa nunca teve uma universidade para formar os próprios quadros. As universidades do México e de Lima foram fundadas ainda no século XVI, e as das demais capitais seguiramse a elas. Todos os vice-reinados da Espanha tinham uma estrutura de governo e uma universidade, em torno das quais gravitava uma elite local.
A  elite brasileira era levada a estudar em Coimbra e permanecia muito tempo na Metrópole, onde se integrava ao aparato do Estado português. Retornava ao Brasil nessa condição, como mostra a trajetória de José Bonifácio. Na época colonial, o único grupo que disseminou alguma educação formal foram os jesuítas, expulsos em 1750. Depois disso, a questão da educação praticamente desapareceu do horizonte brasileiro por muito tempo, mesmo depois da Independência. Não fazia sentido pensar em educação de massas em uma sociedade que continuava, tardiamente, escravista.

Praticamente nenhum avanço houve durante o longo reinado de Pedro II, não obstante sua imagem de aristocrata bom, amante da cultura e das artes. O imperador fundou uma escola para cegos, outra para surdos-mudos, por caridade. Algumas escolas foram abertas com doações de pessoas. Mas sistema público de educação, como política de Estado, isso não existiu.

5.               A agenda brasileira do século XIX destoou da agenda dos países que ocupavam o centro do sistema-mundo ou dos dois – Estados Unidos e Japão – que conseguiram penetrar nele. Nos países centrais, de diferentes maneiras, com diferentes ritmos, predominaram as revoluções educacionais, as reformas agrárias e a industrialização. No Brasil, no mesmo período, cuidamos da unidade territorial e do problemático prolongamento da escravidão. Não vivemos a fase da educação de massas como formadora da nação.
A  situação não mudou nas primeiras décadas do século XX, pois a proclamação da República, em 1889, não alterou as condições estruturais do país. Permanecemos primário-exportadores, e o fim da escravidão, sob hegemonia conservadora, manteve a brutal segregação social. Continuamos sem políticas de Estado para a educação, ainda considerada uma questão particular ou, no máximo, afeita a poderes locais.

As novidades que surgiram na década de 1920 não vieram do Estado, mas da própria sociedade. Movimentos sociais, culturais, políticos e político-militares colocaram na agenda brasileira dois temas até então negligenciados: identidade e desenvolvimento. O povo brasileiro começou a emergir como produtor de cultura, e nossa “vocação agrícola” passou a ser contestada pelos defensores, civis e militares, da indústria. O Brasil se reconhecia, cada vez mais, como um país atrasado, desafiado a apressar o ritmo da própria história.

A Revolução de 1930 foi herdeira desses movimentos e se tornou o marco inaugural de uma refundação do Estado brasileiro. Isso se traduziu, entre outras coisas, na criação do Ministério da Educação e na formulação das nossas primeiras políticas educacionais. Com muito atraso, o Brasil iniciou a formação sistemática de professores, tendo em vista implantar uma rede pública de ensino que, com o tempo, iria se universalizar. Sonhamos com uma educação unitária e para todos, seguindo a melhor tradição europeia.

A construção desse sistema, também aqui, experimentou tensões. Uma delas foi a oposição entre a ideia de uma educação clássica, humanista, generalista, e a de uma educação prática, diretamente voltada à inserção das pessoas no mundo do trabalho. A concepção clássica predominou, mas, ao longo do ciclo desenvolvimentista, também ganhou força a associação direta entre esforço educacional e desenvolvimento econômico, inclusive como forma de legitimar o primeiro.


Nas décadas de 1940 e 1950, isso coincidiu com a difusão mundial da ideia de que os processos de desenvolvimento dependem do que se convencionou chamar de “capital humano”. Fundaram-se escolas técnicas, cresceu o chamado “Sistema S”, com Senacs e Senais, seguindo a concepção de que a educação deveria formar a mão de obra necessária ao desenvolvimento, especialmente à indústria.  
Não chegou a haver um conflito entre as duas concepções, pois todos os tipos de escolas se multiplicaram. Por trás delas, e de outras instituições igualmente jovens, havia um Estado nacional em construção. Ele criava e reproduzia as condições gerais em que as instituições parciais – da cidadania, do desenvolvimento, do controle, da vigilância e da punição – se apoiavam.


Por sua abrangência, sua capilaridade e seu papel, a rede de escolas públicas foi a mais importante criação desse Estado. Pela primeira vez, milhões de crianças e jovens passaram a compartilhar, todos os dias, os mesmos espaços estatais obrigatórios. Educá-los era, antes de tudo, forjar neles uma consciência nacional e transmitir certos saberes, tidos como necessários e consolidados. A narrativa de um passado comum, que conferia sentido ao presente, e o domínio da língua e da escrita eram as etapas iniciais desse processo de formação. 

6.               O ciclo desenvolvimentista, como se sabe, terminou na década de 1980. Graças ao seu impulso, na década seguinte o Brasil conseguiu universalizar, ou quase, o acesso às escolas de primeiro grau. Além disso, expandimos significativamente as redes de segundo e de terceiro graus, de modo que, na virada do século, entrar na escola deixou de ser a grande barreira. Importante vitória.
Mesmo assim, todos reconhecem que a educação brasileira permanece um problema não resolvido. As evidências disso se multiplicam nos indicadores de qualidade. Um teste recentemente aplicado em uma amostra muito significativa – 338 mil alunos do segundo ao quinto ano em 350 municípios espalhados por 21 estados – mostrou que 70% das crianças e jovens das escolas públicas permanecem analfabetos, independentemente da série em que estão. Mais da metade dos alunos do quinto ano foram classificados assim. As avaliações internacionais que aferem o domínio dos fundamentos da matemática nos colocam, invariavelmente, nos últimos lugares, ao lado de países muito mais pobres. Professores lamentam a quantidade de analfabetos funcionais em universidades. 


Nosso povo não domina nem a língua e a escrita, nem o mais elementar manejo dos números. Assim, toda a estrutura educacional do país, do primeiro grau à universidade, fica comprometida, pois isso é a base do que vem depois.

7.               Temos escolas para todos, ou quase todos, mas não conseguimos disseminar educação. O debate sobre isso limita-se às reivindicações de mais recursos e mais “vontade política” para reverter esse quadro. É uma abordagem pobre. A crise da escola reflete questões bem mais profundas.  



Vimos que a educação de massas se afirmou no século XIX, quando foi associada à consolidação das nações, mas o Brasil não viveu essa experiência. Depois, ela se legitimou ao ser considerada parte essencial de projetos nacionais de desenvolvimento. Pegamos carona nessa concepção, mas ela caducou, pois nas últimas décadas o Brasil se acostumou a viver sem projeto. 

Como parte dessa deriva, abandonamos, na prática, o sonho de uma educação unitária, voltada para formar cidadãos, pois recriamos as escolas de pobres (públicas) e as escolas de ricos (privadas), ou seja, aquela educação compacta para muitos e extensa para poucos, que a Europa recusou no século XIX. As classes média e alta voltaram a considerar a educação um assunto privado, cuja função é garantir, aos seus filhos, status e acesso a uma renda diferencial. As boas escolas passaram a ser vistas como empresas especializadas em prestar um serviço, a capacitação para um mercado de trabalho excludente e competitivo. Separam, em vez de promover o encontro. É uma enorme mutação ideológica no conceito de educação.

A escola pública ficou órfã, pois o Estado que a concebeu e a sustentava, material e ideologicamente, já não articula as práticas sociais dominantes. Em seu lugar entrou o mercado, com seu apelo concorrencial, sua volatilidade, sua velocidade. Nesse contexto, a maioria dos jovens não é levada a desenvolver uma subjetividade cidadã, não reconhece conhecimentos consolidados, não vive a expectativa de um futuro em construção. O tempo deles é agora. No lugar de leis gerais, típicas da cidadania, valem as regras que o próprio grupo estabelece em cada momento. 

Se tudo é cambiante, nada é relevante. E numa sociedade em que todos têm alguma informação sobre qualquer assunto, o que importa é opinar, não conhecer. 

Tudo isso questiona o estatuto da escola. Sem poder cumprir suas antigas funções de disciplinamento e preparação para a cidadania, e sem condições para se integrar à desenfreada dinâmica mercantil, a escola pública entrou em um regime de funcionamento cego, próximo à anomia. Não tem papel claramente definido, a não ser o de depósito de crianças e jovens. 

O desafio tradicional dos professores era descobrir como ir além de uma simples aula, tendo em vista superar a rotina instituída; hoje, o mais das vezes, o desafio é conseguir dar uma aula.

Há um choque de subjetividades nas escolas, até aqui insolúvel. Os professores ainda são formados para servir à subjetividade cidadã, enquanto os alunos, cada vez mais, são portadores de uma subjetividade midiática, imagética, errática, que não facilita a permanência produtiva em uma sala de aula. Não se trata de uma anomalia específica ou de despreparo individual de um ou outro estudante. É de condições sociais que estamos falando. 

8.               É hora de repensar fundamentos. Para que, afinal, precisamos de escola pública? Para educar as pessoas. Mas o que isso significa? 

O ser humano não apenas age, como os demais animais, mas interpreta sua ação. Todas as ações humanas são ações interpretadas, e todas resultam de alguma interpretação prévia. Educar é atuar sobre os sistemas de interpretação construídos pela imaginação de cada um, o que nos remete ao universo simbólico, que é constitutivo da nossa existência tanto quanto o nosso corpo físico. 
No ser humano, ser e dever-ser são aspectos indissolúveis. Este é o fundamento ontológico da ética. Ethos, em grego, designa a morada do homem. Se a palavra tomou um significado mais amplo, é porque os gregos da idade clássica enxergaram uma verdade que convém jamais esquecer: seres vocacionados para a liberdade são livres para se destruir. O espaço do mundo só se torna seguro e habitável, para esses seres, se eles se abrigarem na sua morada, o domínio do ethos.

O espaço da liberdade humana não é aquele em que cada um faz o que quer, ou faz o que é capaz de fazer, em desabalada competição com os demais. É aquele em que o potencial criador das pessoas se exerce de maneiras culturalmente delimitadas, socialmente legítimas, em que o certo e o errado, o bem e o mal estão definidos com suficiente clareza. Esse espaço não é rígido e imutável, é certo, mas precisa existir sempre. Fora dele, o que se tem é anomia. 

Ao contrário do que imagina o senso comum, isso é cada vez mais importante. Graças à racionalidade técnica e instrumental, tão a gosto dos economistas, os perigos externos – as intempéries, os predadores, a falta de alimentos – praticamente não nos ameaçam mais. Mas essa racionalidade é insuficiente – e pode ser contraproducente – para enfrentar os nossos maiores desafios atuais. Nossa existência só está ameaçada por nós mesmos, pela nossa incapacidade de construir, em paz, uma vida em comum.

Uma sociedade que perde a capacidade de se comunicar dialogicamente – estabelecendo valores e fins compartilhados, diferenciando o bem e o mal, fixando comportamentos legítimos – acaba por se destruir. Perde o direito à liberdade, pois recria multidões hobbesianas, movidas apenas pelo desejo e o medo. Isso chama o Leviatã.


Permanece insubstituível o papel da educação e dos educadores, pois os sistemas educacionais estão entre os últimos espaços que ainda podem fazer prevalecer a racionalidade comunicativa, cultivando a memória e valorizando a linguagem centrada na razão e na palavra, a linguagem humana por excelência. Nesses espaços, cada vez mais raros, as interações humanas podem existir sem que estejam dominadas pela unidirecionalidade e a velocidade, típicas da comunicação de massas. 

Formar cidadãos, não consumidores passivos e frustrados, continua a ser o insubstituível papel da rede pública de educação. Mas ela não conseguirá renascer sozinha, pelos próprios esforços, independentemente de quanto dinheiro se gaste. Filha de um projeto nacional, ela depende dele para recuperar sua razão de ser. A falta de projeto é mais angustiante que a de dinheiro. 


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Artigo publicado na Revista Politika n. 3, março-abril de 2016

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

A PEC 55 e o DESASTRE para a EDUCAÇÃO



A PEC 55 e o DESASTRE para a EDUCAÇÃO

Entrevista de Claudia Costin



Em entrevista à Deutsche Welle Brasil, Claudia Costin, diretora global de Educação do Banco Mundial, afirma que os impactos da PEC 55, que congela gastos públicos por vinte anos, serão danosos às futuras gerações de alunos. “O Brasil continuará com o desastre educacional que tem hoje.”

Claudia já foi secretária de Educação da cidade do Rio de Janeiro, de Cultura do estado de São Paulo e ministra da Administração e Reforma do governo de Fernando Henrique Cardoso. Hoje, vive nos Estados Unidos, onde leciona na Faculdade de Educação de Harvard. Segundo ela, é imprescindível que o Brasil invista mais nos salários e na formação dos professores para aumentar a produtividade dos novos trabalhadores brasileiros.

Se não conseguirmos avançar nessas medidas, estaremos condenados a uma educação de baixa qualidade, e o Brasil não vai conseguir crescer economicamente. O país será uma promessa falida“, afirma Claudia.

DW Brasil: Como a senhora avalia os impactos da PEC 55 para a educação?

Claudia Costin: Estamos com um problema sério e de longo prazo. Acredito que a PEC 55 vai trazer danos graves para a educação, sem ganhos significativos do ponto de vista fiscal. Não sou contra medidas de austeridade. Houve uma gestão irresponsável das contas fiscais, gastando-se mais do que se podia. Mas na tentativa de correção do problema, é fundamental preservar a educação. Normalmente, quando países têm problemas fiscais, ao menos os mais desenvolvidos, eles preservam a educação dos cortes. O Brasil optou por não fazer isso. É uma grande pena.


Qual será o ponto mais prejudicado pelas novas regras para investimentos em educação?

Muitos olham para os números e dizem que o Brasil já gasta muito com educação. Isso não é verdade. Países que deram saltos na qualidade da educação tiveram de aumentar os investimentos durante um certo período. Não estamos fazendo o mesmo. Pelo contrário. Hoje, não investimos o suficiente no ensino básico e pagamos mal os professores. Acredito que o mais complicado será lidar com a questão da atratividade da profissão de professor, que vai continuar baixa pelos próximos 20 anos. Caso não se estabeleça um mecanismo de revisão logo (antes dos dez anos previstos pela proposta), o Brasil vai continuar com o desastre educacional que tem hoje.


Quais serão as consequências de não se adotar esses investimentos?

O impacto direto é condenar o Brasil a uma baixa qualidade da educação das crianças por um período de 20 anos. Nenhum sistema educacional é melhor que a qualidade de seus professores. Melhorar o salário do professor é uma das medidas mais importantes para aumentar a atratividade da licenciatura, para aqueles jovens que ainda vão escolher que profissão seguir. Pesquisas mostram que os piores alunos tendem a escolher profissões de baixa atratividade. Corrigir esses salários demanda um esforço importante, constante e progressivo. Ao congelarmos os gastos por 20 anos, isso não poderá ser feito. Não é a única medida para melhorar a educação, mas é uma das mais importantes.

O que pode ser feito para melhorar a educação no país, independentemente da quantidade de recursos investidos?

O ideal seria, pelo menos, aprovar revisões dos valores dos investimentos antes dos dez anos – como prevê a PEC 55. Mas mesmo se isso não passar, será preciso mudar a universidade que forma os professores. Tornar a faculdade de educação e a licenciatura mais profissionalizantes, preparar melhor os universitários para a profissão de professor. Também temos de pensar na criação de um processo de ensino mais adequado para os jovens e adotar um currículo nacional comum (a base nacional curricular comum já está em processo de elaboração pelo governo), que defina claramente as expectativas de aprendizagem dos alunos brasileiros.
É preciso que este currículo seja muito mais adequado para as demandas do século 21: que forme jovens que saibam pensar, aplicar conceitos em situações reais, ler e interpretar textos de forma analítica. Tudo isso demanda um professor mais bem preparado. É um esforço que temos de fazer independentemente da PEC do teto dos gastos públicos.

Em que sentido é preciso melhorar a formação dos professores?

Hoje, a formação dos professores é excessivamente focada nos fundamentos da educação, como sociologia da educação, história da educação, filosofia da educação. Os currículos das universidades que formam professores trabalham muito pouco com a prática. Os cursos de Engenharia e Medicina, por exemplo, preparam o futuro engenheiro ou médico com uma abordagem prática e reflexão sobre a prática muito maior.
Em educação, isso não acontece. É urgente mudar os currículos de formação de professores pelas universidades e os concursos públicos das secretarias municipais e estaduais de educação para selecionar professores que, durante sua formação, tenham desenvolvido sua competência de ensinar de forma mais prática, com maior enfoque na didática.

Caso essas mudanças não sejam adotadas, como a senhora vê o país daqui a 20 anos?

Vejo o país estagnado. Uma das questões mais preocupantes que observamos na economia brasileira é a da produtividade, que está estagnada em um patamar muito baixo. Com uma produtividade baixa, e ela tem uma correlação importante com a qualidade da educação e o crescimento econômico de longo prazo, não vamos crescer. Com menos investimentos em educação, não vamos conseguir preparar os jovens para o futuro do mercado de trabalho. Hoje, vários cargos que demandam atividades manuais e intelectuais rotineiras estão se tornando obsoletos e desaparecendo por causa da automação do trabalho.
O que está sendo cada vez mais valorizado no mercado é a capacidade de criação, concepção, reflexão crítica, comunicação. E essas habilidades dependem de uma educação mais sofisticada e de melhor qualidade. Se não conseguirmos avançar nessas medidas, estaremos condenados a uma educação de baixa qualidade, e o Brasil não vai conseguir crescer economicamente. O país será uma promessa falida. O que garante o crescimento econômico de longo prazo, especialmente inclusivo, que diminua a desigualdade, é a educação de qualidade. Se o Brasil colocar no seu projeto de nação a educação como um eixo estruturador, e investir nela, poderemos ser um país diferente.

A senhora conhece outros países que já adotaram medidas semelhantes ao que a PEC 55 propõe para a educação?

Não. No Brasil, quem usa os serviços de educação e saúde públicas são, em geral, as pessoas mais pobres. A classe média frequenta pouco as escolas públicas e os serviços de saúde do governo. Num país tão desigual como o nosso, estaremos atingindo os mais pobres. Com certeza, há outras formas de cortar gastos sem prejudicar investimentos em educação e saúde.


Em oposição à PEC 55 e à Medida Provisória da reforma do Ensino Médio (que, entre outros pontos, diminui a quantidade de disciplinas obrigatórias da grade curricular), milhares de estudantes ocuparam escolas de todo o país. Como a senhora avalia este movimento estudantil?


Durante muito tempo, o sistema educacional brasileiro tratou os jovens de forma um pouco infantilizada, como se não pudessem ser protagonistas de sua própria vida escolar. Na Finlândia, por exemplo [país com desempenho educacional excelente], as escolas não chamam os pais para discutir comportamento de alunos de Ensino Médio. Eles chamam o próprio aluno. O estudante tem de perceber que a educação dele depende do seu protagonismo. Ele é o principal ator na construção dos seus sonhos e na sua vida escolar. Quem vai sair perdendo se a qualidade da educação ficar congelada ou se deteriorar ainda mais vai ser justamente esta geração.
Por isso, vejo esse movimento estudantil de forma positiva, embora eu concorde que o ensino médio brasileiro, com uma média de quatro horas de aula por dia e 13 disciplinas, está insustentável. Precisamos criar trilhas diferentes de educação, em que o aluno possa escolher disciplinas e não cursar durante os três anos as 13, ou 15 em alguns estados, matérias obrigatórias. Se olharmos para os 30 primeiros países no ranking do Pisa, nenhum deles têm mais de seis matérias, e todos têm carga horária maior que quatro horas de aula por dia. É uma pena que a reforma tenha sido proposta por medida provisória, mas ao meu ver ela é necessária.


O Brasil obteve resultados ruins no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) em 2015, ocupando a 59ª posição em leitura, 63ª em ciências e 66ª em matemática, de um total de 70 países avaliados. Por que o desempenho brasileiro foi tão fraco?


O Brasil está estagnado há várias edições do ranking. O Pisa enfatiza a área de ciências, de letramento científico. Em primeiro lugar, estamos com professores muito mal formados para sua função. A universidade não prepara adequadamente professores no Brasil. Um professor de química, por exemplo, tem em média três anos e meio de aulas de química e um ano, ou menos, de aulas de fundamentos da educação. Mas não aprende a didática da química, ele não aprende a ensinar os alunos a pensar cientificamente. A prova Pisa pede exatamente esta competência: aplicar conceitos científicos para resolver problemas do dia a dia.

Os nossos professores não estão sendo preparados para isso. Além disso, dada a baixa atratividade da carreira, considerando os salários, condições e perspectivas, os melhores alunos do ensino médio não escolhem tornar-se professores. E mesmo os que já estão na faculdade de Química, Física e Biologia, por exemplo, na hora de fazer a licenciatura, optam apenas pelo bacharelado, porque o mercado paga muito mais que a sala de aula. A somatória das duas coisas, a baixa preparação da universidade e os salários reduzidos, explica boa parte do problema.


segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

CONVERSÃO DE LICENÇA-PRÊMIO EM PECÚNIA




CONVERSÃO DE LICENÇA-PRÊMIO EM PECÚNIA
02/09/2015 às 20h00 
Fonte:

Por Zeres Sousa (advogada)

1. O que é licença-prêmio?

A licença-prêmio é um direito assegurado ao servidor público, instituído em nosso ordenamento jurídico pela Lei 1.711/52, Estatuto dos Servidores Públicos Civis da União e mantido pela Lei 8.112/90, Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União das Autarquias e das Fundações Públicas Federais.

Originalmente denominava-se licença especial e a partir da alteração trazida pela Lei 8.112/90, em seu artigo 245, passou a chamar-se licença-prêmio sem, todavia, alterar a sua natureza jurídica.

Em ambas as legislações, representava um prêmio ao servidor público assíduo e disciplinado, garantindo a ele o direito de se afastar do serviço público por um período, sem redução de seus vencimentos.

2. Quem tem direito à licença especial ou licença-prêmio e qual o período de afastamento?

O direito à licença especial ou licença-prêmio foi concedido ao servidor que durante o período aquisitivo não sofresse pena de suspensão ou incorresse em falta injustificada.
Perdia o direito à referida licença o servidor que se ausentasse do serviço por motivo de licença para: tratamento de sua própria saúde, pelo período de 6 (seis) meses ou 180 (cento e oitenta) dias, ininterruptos ou não; acompanhar doença em pessoa da família, por mais de 4 (quatro) meses ou 120 (cento e vinte) dias, consecutivos ou não; tratar de interesses particulares; e, finalmente, acompanhar cônjuge, funcionário público ou militar, por período superior a 3 (três) meses.
O período de afastamento, sob a égide da Lei 1.711/52, era de 6 (seis) meses para cada 10 (dez) anos de efetivo exercício, e de 3 (três) meses para cada período de 05 (cinco) anos de efetivo exercício, sob a égide da Lei 8.112/90.

3. E se não houver usufruto do período de licença?
O servidor com direito à licença-prêmio pode requerer o gozo, com o afastamento remunerado, ou a contagem em dobro do período não usufruído para fins de aposentadoria, na forma da Lei 1.711/52.

A Lei 8.112/90 trouxe uma alteração de grande relevância: a possibilidade de conversão em pecúnia do período de licença-prêmio não gozada, em razão de falecimento do servidor, cujo pagamento seria feito aos sucessores.

Todavia, a Lei 9.527/97, que alterou dispositivos da Lei 8.112/90, transformou a licença-prêmio em “novo” instituto, emprestando-lhe natureza jurídica distinta: licença capacitação.

Referida alteração legislativa resguardou aos servidores, cujos períodos de licença tivessem sido adquiridos até 15 de setembro de 1996, o direito de: usufruir da licença-prêmio; contar em dobro o tempo de licença para fins de aposentadoria; ou, tê-los convertidos em pecúnia, para pagamento aos sucessores, em caso de morte do servidor.

4. O que os nossos tribunais têm entendido quanto aos servidores que se aposentam sem que tenham usufruído seus períodos de licença-prêmio ou não os incluíram na contagem do tempo para fins de aposentadoria?

Muitos servidores, talvez por falta de informação ou por exigência do próprio trabalho, têm se aposentado sem usufruir seus períodos de licença e a Administração Pública, de forma recorrente, tem recusado a conversão em pecúnia desses períodos, não restando alternativa a não ser a busca de solução junto ao Poder Judiciário.

Felizmente, o entendimento sobre o tema mudou nos últimos anos, chegando inclusive a ser objeto de apreciação no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, que decidiu não haver necessidade de anterior requerimento administrativo para o ajuizamento de ação judicial requerendo a conversão da licença em pecúnia.

Como se observa do disposto na lei e do entendimento jurisprudencial, ao servidor público em atividade é facultado o afastamento ou a contagem em dobro dos períodos de licença para fins de aposentadoria. Porém, ao servidor já aposentado somente resta a conversão em pecúnia dos períodos de licença-prêmio não gozados, sob pena de enriquecimento indevido para a Administração Pública.

5. Como é feito o cálculo do valor da indenização?

O valor da indenização da licença-prêmio não usufruída está regulado pelo art. 87 da Lei 8.112/1990, o qual estipula que para cada quinquênio ininterrupto de exercício o servidor fará jus a 3 (três) meses de licença, a título de prêmio por assiduidade, com a remuneração do cargo efetivo.
A definição de remuneração está contida na própria Lei 8.112/90, em seu artigo 41: “é o vencimento do cargo efetivo, acrescido das vantagens pecuniárias permanentes estabelecidas em lei”.
Assim, o valor a ser indenizado é o correspondente à multiplicação do valor da última remuneração recebida na ativa, composta pelo vencimento do cargo efetivo e das vantagens pecuniárias de caráter permanentes, pelo número de meses de licença não usufruídos. Ao valor total deve ser acrescido correção monetária desde a data da aposentadoria e juros de mora de 1% ao mês, a partir da citação.

6. Incide Imposto sobre Renda nas indenizações decorrentes de licença-prêmio não usufruída?
É certo que a conversão da licença-prêmio em pecúnia redunda em verba de caráter indenizatório, não representando salário ou contraprestação de trabalho e, por isso, não incide Imposto sobre Renda, conforme entendimento pacificado pelo Superior Tribunal de Justiça que sumulou a questão por meio do Enunciado nº 136 de sua Súmula: O pagamento de licença-prêmio não gozada por necessidade do serviço não está sujeito ao imposto de renda.

7. É possível ao servidor que já implementou todos os requisitos para sua aposentadoria, e que possui períodos de licença-prêmio não usufruídos, requerer, ainda na ativa, sua conversão em pecúnia?

Embora possa parecer possível antecipar a conversão dos períodos de licença-prêmio não usufruídos em pecúnia, uma vez que o servidor já possui todos os requisitos para sua aposentadoria, o entendimento jurisprudencial é de que somente é possível tal conversão após a aposentadoria do servidor.

8. Qual o prazo para requerer a conversão da licença-prêmio em pecúnia?

É certo que a ação de conversão da licença-prêmio em pecúnia é de natureza indenizatória manejada em face da Fazenda Pública.
Analisando o tema, pela via dos recursos repetitivos, o STJ, em 2012, dirimiu a controvérsia existente entre o prazo trienal (três anos) e o prazo quinquenal (cinco anos). Nesta assentada, prevaleceu o entendimento de que o prazo para o ajuizamento de ações requerendo indenização contra a Fazenda Pública prescreve em 5 (cinco) anos, ou seja, o prazo é quinquenal.
No caso específico da conversão da licença-prêmio em pecúnia, a data inicial para a contagem do prazo prescricional de cinco anos, conforme decidido pelo Superior Tribunal de Justiça, no REsp 1254456/PE, também pela via dos repetitivos, é a data do deferimento da aposentadoria do servidor.

9. Conclusão:

O servidor que se aposentou com períodos de licença-prêmio não usufruídos e não contados em dobro, para fins de tempo para aposentadoria, tem o prazo de cinco anos para requerer a conversão desses períodos em pecúnia.
Observe-se, ainda, que para o ingresso com ação judicial não se faz necessário o pedido administrativamente.
Finalmente, o valor da indenização deve corresponder ao valor da última remuneração do cargo efetivo percebido na ativa, acrescido de correção monetária, desde a data da aposentadoria e juros de mora contados da citação.

Explicação adicional (por JORGE, O DA VIRIATO , 13/12/2016)

ATENÇÃO: a possibilidade de pedir PECÚNIA INDENIZATÓRIA só considera  o período aquisitivo até 15/09/1997, uma vez que a Lei 9527/1997, mudou a Licença Especial para Licença Capacitação.

Ou seja, quem tem Licença-Especial NÃO GOZADA no período até 15/09/1997  pode pedi-la em forma de PECÚNIA INDENIZATÓRIA. Licenças-prêmio adquiridas DEPOIS dessa data NÃO PODEM MAIS SER REQUERIDAS como PECÚNIA INDENIZATÓRIA. 

(Vide PERGUNTA 3)



Uma RESSALVA: Esta lei 9527/97 é FEDERAL, ou seja, NÃO SEI DIZER se se aplica neste caso ao Município do Rio de Janeiro. Se se aplicar, gente mais nova talvez não ganhe; se NÃO se aplicar, ÓTIMO, o pessoal mais novo terá a possibilidade de ganhá-la.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

SENSO INCOMUM: O pacote anticorrupção do Ministério Público



SENSO INCOMUM
O pacote anticorrupção do Ministério Público e o fator Minority Report
3 de março de 2016, 8h00





Atuei durante 28 anos no Ministério Público do Rio Grande do Sul e sempre acreditei que, a partir da Constituição de 1988, todos os membros do MP deveriam atuar como guardiães da Constituição. Sugiro que parem a leitura e leiam o Post Scriptum 1.

Sigamos. Sempre agi assim, ainda que, para o grande público, a figura do promotor — por culpa do próprio MP — seja vista como a do grande acusador, do caçador de bandidos, do justiceiro e por aí vão tantos epítetos sugestivos...
Sempre mantive uma atuação pautada pela legalidade constitucional, leitor fiel de Elias Diaz. Por assim dizer, “sou constitucionalista, mas sou limpinho”...!

Nunca me posicionei como reserva moral da sociedade, mas como um agente público que deveria zelar pela aplicação da lei. Este deve ser o papel de um membro do MP em uma democracia. Em ditaduras ocorrem o inverso. Sabemos como ocorria antes de 1988. Mas será que todos sabem que estamos em novo paradigma?

Bem, parece que, em tempos de “guerra contra a corrupção”, a noção constitucional do papel do MP tem perdido cada vez mais seu significado. Procuradores e promotores justiceiros querem combater a corrupção corrompendo a Constituição. E sempre em nome de uma “boa causa”.

É nessa perspectiva que alguns agentes do Ministério Público Federal estão apresentando uma solução facilitadora para o grave problema da corrupção. Ao proporem as 10 medidas anticorrupção os autores estão jogando a criança fora junto com a água suja. Querem fragilizar direitos que foram conquistados a duras penas neste país tristemente marcado por ditaduras ao longo de sua história. Demoramos tanto tempo para conquistar uma Constituição democrática e agora estamos tomando um rumo perigoso, capaz de colocar em risco os avanços.


É sempre bom lembrar que ninguém é a favor da corrupção, salvo o corrupto. Pensando bem, nem o corrupto é a favor da corrupção — com exceção da praticada por ele, é claro. O inferno são os outros... Da mesma forma, ninguém é a favor da impunidade. Tanto a corrupção como a impunidade são verdadeiras pragas que agridem a sociedade. A grande questão é a seguinte: o que estamos dispostos a sacrificar em nome do combate à corrupção? Vamos, por exemplo, relativizar as garantias constitucionais? Abrir mão do Habeas Corpus? Fazer valer prova ilícita?


Pois bem. Já apresentei críticas em relação a tais medidas. Fazendo uma anamnese das medidas propostas, chego à conclusão que o porteiro [1] do Supremo Tribunal Federal já as declarará inconstitucionais. Mas, sigo analisando algumas das principais “bandeiras” dessa cruzada:


Flagrante forjado: 
na pressa, o pacote do MPF ataca a presunção de inocência. Lá se vai a criança... Em vez de apresentar provas lícitas que possam comprovar a prática de conduta ilícita de seu agente público, o Estado estará autorizado a simular situações que permitam testar a conduta do agente. Uma proposta, além de inconstitucional, patética. Funcionaria muito bem em regimes totalitários. Quero testar a conduta de um agente público e, para isso, ofereço propina para ele... O agente, sem saber que se trata de uma simples pegadinha, aceita a propina e, logo em seguida, é preso em flagrante. Por que o Brasil demorou tanto a ter essa ideia? O projeto do MPF pretende o quê com isso?


Teste de integridade: 
aqui entra o fator Minority Report, filme futurista em que o Estado consegue acabar com os assassinatos usando uma divisão pré-crime. Essa divisão visualiza o crime antes de ocorrer através dos precogs(pré-cognição, por óbvio). Ali, o culpado é punido antes que o crime seja praticado. Pois o pacote do MPF propõe algo parecido. Trata-se de o que chamo de "eugenia cívica". Pelo pacote, o agente público deve se submeter a testes que apontem se é propenso a cometer crimes. Como assim? Já existe tal ciência? Mais: e se o “teste” for positivo, será meio idôneo de prova, ainda que o acusado a tenha produzido contra si mesmo? E será aplicado nos concursos de juiz e procurador? E na indicação de ministros? Eles não são agentes públicos? Seria algo como o teste de fidelidade que se vê na televisão brasileira?
Chama a atenção a ressalva do MPF de que tal teste não pode ser feito de forma a representar “uma tentação desmedida, a qual poderia levar uma pessoa honesta a se corromper”. Ok. Quer dizer que quanto maior a propina melhor para o corrupto que sem dúvida vai alegar “tentação desmedida”? Ou existe uma “medida” da tentação “desmedida”? Então quer dizer que uma pessoa honesta é honesta só até certo ponto? Claro, todo mundo tem um preço! Será?


Inversão do ônus da prova:
sugere o MPF o crime de “enriquecimento ilícito”, no qual o agente é culpado caso não consiga explicar o aumento de seu patrimônio. Nítida inversão do ônus da prova. Segundo o MPF, isso não seria inversão, mas “escolher a única explicação para a discrepância”, com “base na experiência”. Nessa mesma linha, é proposto o chamado “confisco alargado”, onde diante da condenação por determinados crimes a diferença entre o patrimônio existente e aquele cuja origem foi demonstrada é perdido. Trata-se, como o próprio MPF reconhece na justificativa, de uma “presunção razoável” da ilicitude (sic). Sim, vocês leram corretamente: Presunção Razoável da Ilicitude! Não sei o que é pior: condenar com base na inversão do ônus da prova ou partindo de uma presunção?

Aproveitamento de prova ilícita: 
O porteiro do STF terá muito trabalho. O pacote propõe o aproveitamento de provas ilícitas no artigo 157 do CPP quando estas servirem para refutar álibi, fizerem contraprova de fato inverídico deduzido pela defesa ou demonstrarem falsidade ou inidoneidade de prova por ela produzida, ou necessária para provar a inocência do réu. Algo como “álibi não provado, réu culpado”. O que chama a atenção é que a nulidade somente deve ser decretada quando servir para dissuadir os agentes do Estado, ou seja, quando servir para orientá-los a não mais violar direitos. E eu que pensei que o processo deveria servir ao réu! Quer dizer que, nesses casos, mesmo sendo produzida ilicitamente o azar seria do réu?

Extensão da prisão preventiva: 
o MPF quer que seja possível decretar prisão preventiva para “permitir a identificação do produto e proveito do crime” ou “assegurar sua devolução” ou “evitar utilização para fuga ou defesa”. Será que entendi? O cidadão pode ser preso como forma de pressão para que devolva o dinheiro? A prisão como forma de coação? Claro, seguem a linha da prisão para celebrar “delação”. Adverte o MPF que “não se trata de prisão por dívida”! Claro que não. Afinal, se permitem a ironia, sequer uma dívida foi constituída ainda! Sequer um julgamento ocorreu! Chamando as coisas pelo nome: É uma prisão como constrangimento, coação, simplesmente para que o acusado entregue o dinheiro.

Informante confidencial: 
pretende legalizar o denuncismo próprio de regimes autoritários, onde as pessoas incriminam vizinhos, colegas de trabalho, familiares, desafetos, etc., sem ter que mostrar o rosto para o denunciado (lembram de Lon Fuller – O caso dos denunciantes invejosos?). Nem é necessário gastar caracteres para criticar essa pretensão. Só o nome já se delata.


Transformação da corrupção em crime hediondo: 
é a ideia mágica de fazer com que a corrupção tenha uma pena mais grave do que o homicídio em casos de desvio igual ou superior a cem salários mínimos. Em vez de buscar soluções mágicas, apresentadas por seguidores do direito penal máximo que acreditam que uma simples mudança na lei — no sentido de torná-la mais rigorosa — pode mudar a realidade, não seria melhor lutar para ampliar a democratização do nosso sistema político?
O velho punitivismo nunca foi a melhor solução... Vejam a Inglaterra do século XVIII, que transformou o ato de bater carteiras em pena de morte por enforcamento. No dia dos primeiros enforcamentos — em praça pública — foi o dia em que mais carteiras furtaram. O exemplo fala por si.


Restrição de recursos e fragilização do Habeas Corpus: 
com um discurso preocupado com a eficiência (sic) da Justiça, o MPF propõe reduzir os recursos. Os argumentos são parecidos com os do tempo da ditadura. Em nome de uma boa causa se ataca o Estado (Democrático?) de Direito. Afinal, as alterações servirão para caçar somente os homens maus que habitam a república. E assim o MPF retoma o argumento dos militares a favor da restrição do habeas corpus: “estamos aperfeiçoando o sistema processual brasileiro”.
Ora, o Habeas Corpus já foi melhor há mais de mil anos. Sendo mais explícito: pela proposta do MPF, fica vedada a concessão do HC de ofício; em caráter liminar; quando houver supressão de instância; para se discutir nulidade, trancar investigação ou processo e, além disso, condiciona sua concessão à prévia requisição de informações ao promotor natural da instância de origem. Por que não proibir logo o Habeas Corpus?

 Declaração do trânsito em julgado de ação: 
decretação do trânsito em julgado em casos de recursos manifestamente protelatórios. Num país marcado pela discricionariedade judicial, querem que o trânsito em julgado da ação possa ser declarado monocraticamente. Inacreditável. Não seria mais fácil propor uma PEC dizendo: o réu será amarrado com uma pedra no pescoço e jogado na água; se flutuar, estará absolvido; se afundar, culpado. Muito mais barato.

Ampliação dos prazos de prescrição: 
ao mesmo tempo, propõem eternizar o processo. De acordo com os procuradores, “[...] a busca da prescrição e consequente impunidade é uma estratégia de defesa paralela às teses jurídicas, implicando o abuso de expedientes protelatórios”. Assim, a polícia, o MP e o Judiciário poderão atuar sem qualquer preocupação com o tempo, pois o Estado terá todo tempo do mundo para exercer a punição. Algo “eficiente”, se não estivéssemos falando de uma democracia.



Antecipação do cumprimento de pena: 
bom, esse é o tema da moda. Como a proposta dos procuradores é anterior à decisão do Supremo Tribunal, parece que eles venceram essa, não? De todo modo, estamos lutando para uma virada na decisão do STF, conforme escrevi no artigo sobre a proposição de ADC.

Enriquecimento ilícito de agentes públicos: 
considera-se situação de enriquecimento ilícito quando houver amortização ou extinção de dívidas do servidor público por terceiro. O negócio é tão surreal que se o próprio pai paga dívida de filho servidor público endividado, pode ser processado porque é um terceiro enriquecendo ilicitamente o rebento.

Eis aí o pacote. Se a moral corrige o Direito, minha pergunta é: quem corrige a moral?


Post scriptum 1: em defesa (prévia) da coerência e integridade de meu discurso.

Antes que alguém venha de novo (nas redes sociais e nas redes internas do MP isso se tornou voz corrente) com o argumento de que Lenio Streck escreve isso porque hoje é advogado, sugiro que não se atirem de peito aberto nessa empreitada... para não quebrarem a cara.

Não há diferença entre o Lenio MP e o Lenio pós-MP.

Todos os meus livros seguem uma linha antidiscricionária, garantista e social. Mesmo em questões, digamos assim, mais conservadoras, sempre a Constituição esteve presente (por exemplo, na questão de a CF conter mandados de criminalização).

Alguns pontos que mostram L=L: [LENIO MP =LENIO PÓS-MP]

na revisão constitucional de 1993, defesa intransigente de uma revisão restrita (escrevi um livro sobre isso);

propus durante anos a proibição do uso de antecedentes no plenário do júri (e assim agi), porque o direito penal é do fato e não do autor;

rejeição do in dubio pro societate, por não ser um princípio;

combate ao moralismo;


fui um dos primeiros a introduzir Ferrajoli explicitamente no processo criminal; defendi sempre a secularização do Direito;


mais: o garantismo explicitado no livro sobre Interceptações Telefônicas e no livro sobre o Júri; e em Criminologia e Feminismo, escrito com Alessandro Barata; e em Hermenêutica em Crise (com 15 edições e tiragens), etc. Fiz a primeira arguição de inconstitucionalidade difusa em outubro de 1988 para afastar o processo judicialiforme;

primeiro a sustentar que a lei da sonegação fiscal devia ser usada a favor de quem comete crime de furto (isso em 1990), tese acatada no TJ-RS;

pena abaixo do mínimo — uma das teses que ajudei a sustentar junto com a 5ª Câmara;

 sustentei a tese de que a majorante do roubo por concurso de pessoas (1/3) devia ser usada a favor dos réus em crime de furto qualificado;

sustentei, pioneiramente, a inconstitucionalidade da reincidência (acórdão do desembargador Amilton); como procurador, em mais de 80% dos processos em que oficiei, sustentei teses garantistas, a maioria vitoriosas a favor dos acusados (não que isso fosse bom ou ruim, mas porque era de lei);

presente, em todos os pareceres, a filtragem hermenêutico-constitucional;

as seis hipóteses de minha teoria da decisão foram criadas ainda como procurador;

propus que o MP levasse ao PGR a feitura de uma ADC no caso da progressão de regime, para evitar que apenas alguns réus recebessem o benefício da progressão nos crimes hediondos;
aliás, sempre defendi a progressão;


quando nem a OAB se dera conta, sustentei, em comandita com a 5ª Câmara do TJ-RS, que todos as ações penais em que o interrogatório fora feito sem a presença de advogado eram... nulos (na época, o STJ anulava as nossas anulações sob o argumento de que CPP não exigia isso — quer dizer, obedecia-se o CPP e não a CF!);


fui pioneiro em criticar o pan-principiologismo...[ ideia de que "princípios" valem mais do que NORMAS jurídicas]


Posso fazer uma lista que levaria algumas páginas. Meus companheiros de 5ª Câmara criminal do TJ-RS (Amilton, Aramis, Genaceia e Gonzaga Moura podem falar sobre isso). Portanto, quem quiser entrar nessa seara de falácia ad hominem, chegará tarde. Para registro, minha defesa do poder investigatório do MP está em textos e livros... da década de 90 e, interessante, como advogado, continuei a defender essa tese. Sem esquecer as orientações de mestrado e doutorado sobre a defesa ortodoxa da CF, com dois prêmios Capes na algibeira.

Post scriptum 2: A relativização dos princípios e da Constituição
Fico muito preocupado com discursos nas redes sociais apoiando teses tipo “relativização dos princípios constitucionais” em nome da segurança pública e do combate à impunidade. Já se fala até do uso da tortura. Diz-se até que o único princípio intocável é o de não ser escravizado. Tudo para sustentarem que o STF acertou na decisão da presunção da inocência. Se os ministros do STF lerem e verem o que está nas redes sociais, mudarão seu voto, porque ficarão assustados com os “apoios”.
O que quero dizer é que estou muito preocupado com o rumo que o Direito está tendo no país. Estamos esticando demais a corda. O moralismo pode nos arrastar para o abismo, rompendo o pacto da modernidade.
Por isso, meu brado: Acorda, comunidade jurídica. Não “a corda” (para enforcar alguém), mas “acorda”!

1 Escrevi em um jornal que até o porteiro... e recebi críticas, porque estaria menosprezando o porteiro. Incrível como tem gente que, em nome da linguagem PC[POLITICAMENTE CORRETA] , acha “pelo em ovo”.
  
Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck, Trindade e Rosenfield Advogados Associados:www.streckadvogados.com.br.


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NOTA PESSOAL do BLOG: (Jorge, o da Viriato, 02/12/2016)

Este artigo foi escrito em março de 2016 a respeito das MEDIDAS CONTRA A CORRUPÇÃO recém-votadas no Congresso, agora em NOVEMBRO. Pelos argumentos do autor do artigo, as tais MEDIDAS VIOLARIAM a CONSTITUIÇÃO e o DIREITO PENAL BRASILEIROS. E mais: as medidas contra a corrupção estabeleceriam, na prática, um virtual REGIME DE EXCEÇÃO, em que a pretexto de COMBATER A CORRUPÇÃO, nossas liberdades correriam RISCO.

Talvez a pessoa diga: "Ah!, EU NÃO SOU POLÍTICO,  EU NÃO SOU CORRUPTO!" 
OK! Mas lembraria aqui a frase de um escritor latinoamericano :

" A LEI é COMO SERPENTE, só PICA OS DESCALÇOS"
 .
(Você se acha um "CALÇADO", bebê?)