A escola perdeu sua função social no Brasil
(veja.com ; 11/10/2014)
João Batista Oliveira
Pouca gente discorda que é papel da
escola transmitir os conhecimentos imprescindíveis ao desenvolvimento do
indivíduo e, por tabela, do país. Para o estudioso João Batista Oliveira, contudo, a missão vem sendo
esmagada no Brasil por políticas mais interessadas em propagandear números
grandiosos e por ideologias cujo interesse passa longe da educação. O resultado
é o fracasso do ensino no país.
"Perdemos a noção da função social da
escola. Ela deixou de ser cobrada pelo cumprimento de suas obrigações essenciais
e passou a ser cobrada por milhares de coisas que ela não tem condição de
fazer, como cuidar da educação sexual, educação para o trânsito, para o consumo
etc.", diz Oliveira.
A história de como se deu esse
processo é dissecada no livro Repensando a Educação Brasileira, que
chega às livrarias nesta semana, em que o pesquisador discute qual é, enfim, a
função da escola e propõe medidas para recolocar nos trilhos professores e
escolas. Oliveira atuou durante vinte anos como consultor do Banco Mundial e da
Organização Internacional do Trabalho e ajudou a implantar projetos de educação
em mais de sessenta países.
No Brasil, foi secretário executivo
do Ministério da Educação e, desde 2006, está à frente do Instituto Alfa e
Beto, organização não governamental que promove a alfabetização em redes
públicas de ensino. Em dezembro, a ONG vai realizar pela primeira vez o Prêmio Prefeito
Nota 10, iniciativa que vai identificar e recompensar o
município brasileiro que mantém a melhor rede de ensino do país.
Confira a seguir a entrevista que ele concedeu a VEJA.com.
Como o senhor vê o atual debate sobre
educação no Brasil?
Em nosso país, não há debate. A
educação é tratada somente do ponto de vista de leis, regulamentos, aumento de
vagas, interesses de professores e sindicatos. A política de educação sempre
foi pautada pela ideia de crescimento. Ou seja, mesmo que país esteja vendo sua
taxa de natalidade cair, ainda se vendem promessas de mais vagas, além de mais
tempo na escola, mais disciplinas no currículo, mais regulamentação. É uma
estratégia que interessa aos políticos, porque gera emprego para professores e
mais construções para somar ao orçamento, que caem bem em período eleitoral. De
certo modo, essa visão distorceu o debate, que virou um discurso de carências:
falta isso, falta aquilo. As políticas governamentais induziram a essa situação
e eliminaram os espaços para discutir outras questões, como a aprendizagem do
aluno. No quadro atual, o estudante é mais um subproduto desse debate. Na outra
ponta, existe a responsabilidade da academia, com professores e pesquisadores
que rechaçam qualquer ideia contrária a suas ideologias. Eles fazem uma
doutrinação ideológica e antiquada de que educação é um objetivo de dominação e
de controle e que a pedagogia não interessa.
De onde surgiu essa ideia?
Nas décadas de 1970 e 1980, sob a
influência dos movimentos populares que cresceram na França em 1968, houve uma
inflexão no discurso pedagógico brasileiro. Até então, ele era razoavelmente
formalista, sempre com uma parte legal muito forte, assim como a atuação
marcante do Conselho Nacional de Educação. Do ponto de vista pedagógico, era
razoável. Era normal falar em currículo, cobrar do professor conhecimento de
sua disciplina, aprovar o aluno que sabe e reprovar o que não sabe, tudo dentro
de uma concepção acrítica e ingênua. Isso era natural, como o é dizer que a mãe
deve amar e amamentar seus filhos. Ideias apoiadas nas teorias de Pierre Bourdieu
e Jean-Claude Passeron, na França, e de Paulo Freire, no Brasil, que afirmavam
que a escola reproduz desigualdades sociais porque ensina só aquilo que os
burgueses querem. Com eles, ou não se ensina nada ou se ensina a fazer
revolução. Enquanto os demais países passaram pela constestação e mudaram o
discurso, no Brasil a ideia se tornou uma crítica hegemônica e permanente.
Como esse pensamento chegou à sala de
aula?
As faculdades que formam professores
foram dominadas por essas pessoas. Eu tenho amigos que ainda atuam nas
faculdades de educação e a vida deles é um inferno, porque não há espaço para
diálogo. Tiraram dos currículos dos cursos de pedagogia métodos quantitativos e
aulas de estatística, porque as pessoas que dominaram os cursos eram contra
essas ideias. Enquanto isso, muitos países avançaram e passaram a medir o
ensino e atacar as deficiências baseados em dados empíricos. Ao mesmo tempo,
temos uma sociedade de baixa renda que não cobra melhorias, porque segue o
discurso político de que mais é melhor. Segundo esse discurso, há mais escolas,
uniforme, transporte, merenda, mais chances de ir à universidade: logo, não se
poderia dizer que a educação está uma porcaria. Não há, contudo, contestação da
qualidade. Já para as classes média e alta, é confortável essa situação, porque
elas precisam fazer muito pouco para competir com a mediocridade. Não há, por
exmeplo, disputa de vaga na USP com o mercado internacional. A elite deita em
berço esplêndido e é acomodada.
Pensando do ponto de vista econômico,
não seria mais interessante pleitear melhor educação e garantir desenvolvimento
para o país?
Com certeza. É tão necessário
que eu não consigo entender por que os empresários são tão bonzinhos em relação
à questão da educação brasileira. Todo mundo sabe que o maior recurso das
economias modernas são as pessoas, ou seja, seu conhecimento e competências.
Isso vale mais que soja, ouro, pré-sal. Os países com que competimos vão ganhar
a competição na medida em que tiverem gente mais bem preparada. Gente
capacitada é dinheiro, e os empresários sabem disso. Não dá para entender essa
vocação suicida das elites empresariais. Só reclamar por mais cursos técnicos
não adianta, porque não é só a mão de obra treinada que importa. Quanto mais
gente bem formada tiver no país, independente do curso, melhor será para a
economia. Talvez seja fruto do bom mocismo daqueles que esperam o apoio do
BNDES sem criticar nada. O empresariado seria o principal ator para forçar uma
mudança. Eles têm recursos, bons modelos de gestão, conseguem influenciar leis
no Congresso, reduzir impostos. Enfim, têm uma força brutal que, se colocada
para cobrar mudanças na educação, faria uma revolução.
O que é possível fazer para mudar
esse quadro?
Além de contar com a influência do
empresariado, também é preciso rever a tônica do debate. Precisamos ir mais
fundo, nos perguntar o que é a educação. Afinal, perdemos essa noção. A escola
deixou de ser cobrada pelo cumprimento de suas obrigações essenciais e passou a
ser cobrada por milhares de coisas que ela não tem condição de fazer, como
cuidar da educação sexual, educação para o trânsito, para o consumo etc. A
escola perdeu sua função social.
Qual é, afinal, essa função?
A meu ver, a função histórica e
antropológica é transmitir conhecimento. Conhecimento que é relevante para o
desenvolvimento das pessoas, ou seja, aquele proveniente das disciplinas
básicas: matemática, instrumentos da lógica, linguagem, ciências. Mas os
professores são contra ensinar, são contra transmitir conhecimento, tudo
naquela lógica da ideologia que já citei. Por isso, há movimentos tão fortes
contra a implantação de um currículo nacional. Esses grupos são contra
currículo não só por uma questão pedagógica: trata-se de um problema
ideológico. Eles acham que a escola não pode definir o que deve ser ensinado.
Mas, sem isso, o Brasil sai perdendo. Se não há um currículo, não dá para saber
o que ensinar e como avaliar e formar o professor. Nós perdemos o fio da meada
enquanto os outros países, que também passaram por mudanças, mantiveram o foco
no que deve ser ensinado. O conceito do que é educação precisa ser recomposto,
mas isso é difícil, porque os que manipulam a sociedade seguem apenas uma linha
de pensamento hegemônico e não estão abertos a discussão.
Como o senhor avalia as mais recentes
políticas que tratam do ensino, como o Plano Nacional de Educação (PNE),
sancionado pela presidente Dilma Rousseff em junho?
Como não temos a cultura da educação,
onde se cria a definição de escola, nós não temos também as instituições que
compõem o sistema educacional. Nós não temos uma ideia clara do papel do
professor, do gestor, do currículo. Nós temos, se muito, uma ideia de
avaliação, como Enem e Prova Brasil, e uma ideia de financiamento, ou seja,
quem paga a conta. No mais, nenhuma outra instituição. Na falta disso, a
política educacional se baseia em planos como o PNE, sujeitos a descontinuidade
e que fracassam em 70% dos casos, como já foi comprovado por outros estudiosos.
É tudo feito no vácuo cultural, sem as instituições, que também são parte da
cultura. A educação no Brasil é uma terra arrasada.
No livro, o senhor propõe mudanças na
avaliação e financiamento do ensino. Como?
A primeira delas é uma mudança na
avaliação do ensino. A interpretação dos índices educacionais do país é feita
como em uma tabela de campeonato, mirando em quem tem a melhor ou pior nota. E
na educação não se pode fazer isso. Aquela escola que tem a melhor nota não é,
necessariamente, a que tem o melhor ensino. Isso depende do aluno, da família,
do DNA, não só da escola. É preciso descontar esses fatores para
encontrar o efeito diferencial. Há inúmeros estudos nesse sentido, um deles do
atual presidente do Inep (órgão do Ministério da Educação responsável pelas
avaliações), Francisco Soares. Ele diz que a melhor escola é aquela que
acrescenta mais conhecimento ao aluno, descontando todos os fatores que não são
da escola. É importante ressaltar o efeito escola e não só dizer que uma ou
outra é melhor. O segundo ponto é o financiamento. Dado que temos uma mudança
na demografia e um índice de repetência muito alto, uma abordagem de choque
seria fazer investimentos em educação proporcionais à sua população do Estado
ou município, e não ao número de alunos, como é feito hoje. Isso daria mais
flexibilidade para os entes da federação escolherem como querem dividir
investimebntos nos diferentes níveis do ensino. Um caminho é incentivar a
política de municipalização do ensino, que entrou em debate, mas não foi levada
adiante.
O senhor também trata da questão da
formação do professor. O que fazer?
Não podemos pensar o professor em
partes, temos que olhar o todo. É preciso repensar os meios de contratação, a
formação inicial, os planos de carreira, de estágio probatório e de avaliação.
Tem que ser uma equação para atrair os melhores profissionais, oferecer bons
curso, bons estágios, carreiras interessantes e, é claro, colher resultados na
aprendizagem do aluno. Um plano que se concretiza a longo prazo. Enquanto isso,
no curto prazo, é preciso pensar em políticas de transição. O Brasil insiste em
pegar qualquer pessoa sem formação e acha que vai prepará-la para o magistério
oferecendo-lhe um curso de 30 horas. Não vai. A transição tem que estar
associada à mudança, pensando em mecanismos de contratação e demissão e, acima
disso, pensando no que esses professores sem formação vão ensinar enquanto
isso.
Como se define isso?
Com sistema de ensino estruturado e
consistente. Imagine que o professor da sala A ensina fração de um jeito e o da
sala B, de outro. É um caos. Como isso é de fundo ideológico, baseado no
discurso de que o professor tem que ter autonomia total para definir o que
ensina, pior fica. Os professores não tem condição de exercer autonomia. Escola
boa tem que ser autônoma e poder desenhar seu próprio currículo, mas tem que
ter articulação para fazer isso. O que vemos são pessoas exigindo o controle de
tudo. Sou a favor de o professor só ter autonomia quando tiver condições
necessárias para exercê-la. Você só dá a chave de casa para a criança que tem
juízo. Pensando do ponto de vista do aluno, como a categoria central do sistema
educativo, o resto se perverte. Não faz sentido pensar no direito do professor,
do interesse da categoria, se o aluno está diante de um professor que não foi
bem formado. O que é melhor: dar autonomia ou orientar para que ele faça algo
que ajude o aluno?
Recentemente, um grupo de professores
no Quênia passou a utilizar roteiros de aula que devem ser seguidos à risca.
Como parte da metodologia, o docente não pode ampliar a aula para além do
roteiro. Um estudo mostrou avanços significativos no desempenho dos alunos. O
senhor acha que, em casos extremos, essa seria uma alternativa?
Claro, o ensino estruturado é isso.
Há estudos que mostram que os países com pior desempenho educacional são os que
mais demonstram melhorias quando adotam materiais estruturados para as aulas.
Óbvio que são medidas curativas, mas é o tipo de estratégia adequada enquanto
se conserta a base do sistema. Até lá, não se pode dar autonomia para quem não
tem condições. Contudo, o que se nota pelas revoluções educacionais dos países
que hoje estão no topo lista do Pisa (avaliação de educação mundial feita
pela OCDE) é que eles seguem as mesmas práticas, que incluem
currículo, mas vão além, envolvendo formação de professores, definição de
estrutura escolar, organização do sistema de ensino, orientações para cursos
superiores que formam docentes. No Brasil, cada um pensa de um jeito e não vejo
caminhos para melhorias a partir da lógica atual.
Por: Bianca Bibiano10/11/2014 às 07:15 -
Atualizado em 11/11/2014 às 17:17
http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/a-escola-perdeu-sua-funcao-social-no-brasil-diz-estudioso/
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