O comunismo real
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 13 de abril de 2014
Nos dicionários e na cabeça do povinho semianalfabeto das
universidades, a diferença entre capitalismo e comunismo é a de um “modo de
produção”, ou, mais especificamente, a da “propriedade dos meios de produção”,
privada num caso, pública no outro. Mas isso é a autodefinição que o comunismo
dá a si mesmo: é um slogan ideológico, um símbolo aglutinador da militância,
não uma definição objetiva. Se até os adversários do comunismo a aceitam, isto
só prova que se deixaram dominar mentalmente por aqueles que os odeiam – e esse
domínio é precisamente aquilo que, no vocabulário da estratégia comunista, se
chama “hegemonia”.
Objetivamente, a estatização completa dos meios de produção
nunca existiu nem nunca existirá: ela é uma impossibilidade econômica pura e
simples. Ludwig von Mises já demonstrou isso em 1921 e, após umas débeis
esperneadas, os comunistas desistiram de tentar contestá-lo: sabiam e sabem que
ele tinha razão.
Em todos os regimes comunistas do mundo, uma parcela
considerável da economia sempre se conservou nas mãos de investidores privados.
De início, clandestinamente, sob as vistas grossas de um governo consciente de
que a economia não sobreviveria sem isso. Mais tarde, declarada e oficialmente,
sob o nome de “perestroika” ou qualquer outro. Tudo indica que a participação
do capital privado na economia chegou mesmo a ser maior em alguns regimes
comunistas do que em várias nações tidas como “capitalistas”.
Isso mostra, com a maior clareza possível, que o comunismo
não é um modo de produção, não é um sistema de propriedade dos meios de
produção. É um movimento político que tem um objetivo totalmente diferente e ao
qual o símbolo “propriedade pública dos meios de produção” serve apenas de
pretexto hipnótico para controle das massas: é a cenoura que atrai o burro para
cá e para lá, sem que ele jamais chegue ou possa chegar ao prometidíssimo e
inviabilíssimo “modo de produção comunista”.
No entanto, se deixaram a iniciativa privada à solta, por
saber que a economia é por natureza a parte mais incontrolável da vida social,
todos os governos comunistas de todos os continentes fizeram o possível e o
impossível para controlar o que fosse controlável, o que não dependesse de
casualidades imprevisíveis mas do funcionamento de uns poucos canais de ação
diretamente acessíveis à intervenção governamental.
Esses canais eram: os
partidos e movimentos políticos, a mídia, a educação popular, a religião e as
instituições de cultura. Dominando um número limitado de organizações e grupos,
o governo comunista podia assim controlar diretamente a política e o
comportamento de toda a sociedade civil, sem a menor necessidade de exercer um
impossível controle igualmente draconiano sobre a produção, a distribuição e o
comércio de bens e serviços.
Essa é a definição real do comunismo: controle efetivo e
total da sociedade civil e política, sob o pretexto de um “modo de produção”
cujo advento continuará e terá de continuar sendo adiado pelos séculos dos
séculos.
Aprática real do comunismo traz consigo o total desmentido
do princípio básico que lhe dá fundamento teórico: o princípio de que a
política, a cultura e a vida social em geral dependem do “modo de produção”. Se
dependessem, um governo comunista não poderia sobreviver por muito tempo sem
estatizar por completo a propriedade dos meios de produção. Bem ao contrário, o
comunismo só tem sobrevivido, e sobrevive ainda, da sua capacidade de adiar
indefinidamente o cumprimento dessa promessa absurda. Esta, portanto, não é a
sua essência nem a sua definição: é o falso pretexto de que ele se utiliza para
controlar ditatorialmente a sociedade.
Trair suas promessas não é, portanto, um “desvio” do
programa comunista: é a sua essência, a sua natureza permanente, a condição
mesma da sua subsistência.
Compreensivelmente, é esse mesmo caráter dúplice e
escorregadio que lhe permite ludibriar não somente a massa de seus adeptos e
militantes, mas até seus inimigos declarados: os empresários capitalistas. Tão
logo estes se deixam persuadir do preceito marxista de que o modo de produção
determina o curso da vida social e política (e é quase impossível que não
acabem se convencendo disso, dado que a economia é a sua esfera de ação própria
e o foco maior dos seus interesses), a conclusão que tiram daí é que, enquanto
estiver garantida uma certa margem de ação para a iniciativa privada, o
comunismo continuará sendo uma ameaça vaga, distante e até puramente
imaginária. Enquanto isso, vão deixando o governo comunista ir invadindo e
dominando áreas cada vez mais amplas da sociedade civil e da política, até
chegar-se ao ponto em que a única liberdade que resta – para uns poucos,
decerto – é a de ganhar dinheiro. Com a condição de que sejam bons meninos e
não usem o dinheiro como meio para conquistar outras liberdades.
Ao primeiro sinal de que um empresário, confiado no
dinheiro, se atreve a ter suas próprias opiniões, ou a deixar que seus
empregados as tenham, o governo trata de fazê-lo lembrar que não passa do
beneficiário provisório de uma concessão estatal que pode ser revogada a
qualquer momento. O sr. Silvio Santos é o enésimo a receber esse recado.
É assim que um governo comunista vai dominando tudo em
torno, sem que ninguém deseje admitir que já está vivendo sob uma ditadura
comunista. Por trás, os comunistas mais experientes riem: “Ha! Ha! Esses
idiotas pensam que o que queremos é controlar a economia! O que queremos é
controlar seus cérebros, seus corações, suas vidas.”
E já controlam.
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