domingo, 26 de junho de 2016

SETE AÇÕES que FORTALECEM a EDUCAÇÃO INFANTIL – Claudia Costin



SETE AÇÕES que FORTALECEM a EDUCAÇÃO INFANTIL – Claudia Costin.
A Diretora Global de Educação do Banco Mundial é a brasileira Claudia Costin. Nesta entrevista exclusiva para nosso blog, ela compartilha suas vivências pelo mundo e sua experiência como Secretária da Educação do município do Rio de Janeiro.

Fundação Maria Cecília Souto Vidigal – Claudia, atuando no Banco Mundial, tendo contato com tantas realidades, como você avalia a forma como o tema da educação infantil tem sido tratado pelo mundo?

Claudia Costin – Vivemos um momento de uma importância particular. Em setembro de 2015, a ONU definiu os objetivos para o desenvolvimento sustentável (ODS), a serem alcançados em 2030. Um deles, o ODS4, sobre educação, tem um subitem específico (4.2) para a educação infantil, indicando que até 2030 asseguremos a todas as crianças acesso ao desenvolvimento da Primeira Infância, ao cuidado e à educação de qualidade, preparando-as para sua trajetória na educação básica. Essa meta também está relacionada a uma meta da saúde, a redução da desnutrição infantil crônica (meta 2.2) em até 40%, porque já se sabe que a desnutrição, especialmente nos primeiros mil dias de vida, causa danos incalculáveis ao desenvolvimento e, consequentemente, à aprendizagem. Hoje temos cerca de 159 milhões de crianças no mundo com desnutrição severa. Também já é fato que não bastam a alimentação e os estímulos cognitivos para uma arquitetura do cérebro saudável. O vínculo, o afeto, um ambiente favorável, o acolhimento têm influências extremamente positivas na vida adulta e na aprendizagem. Pelo que tenho visto e pesquisado pelo mundo, os programas que enfatizam a nutrição, a estimulação precoce e o vínculo combinados são os que mais dão certo para a Primeira Infância.

FMCSV – Ou seja, crianças expostas a situações de vulnerabilidade extrema podem ter a aprendizagem prejudicada.

CC – Sim. A criança submetida ao estresse tóxico na Primeira Infância pode interpretar a sala de aula, como bem mostra Paul Tough em seu livro recém lançado, Helping Children Succeed, como um território inimigo, de confrontos e conflitos. Nem sempre o professor está preparado para entender a situação e, por desconhecimento, acaba, por vezes, com sua conduta, reforçando a ideia de que é mesmo um ambiente hostil. Daí uma parte da violência escolar emerge.

FMCSV – Na cidade do Rio de Janeiro, como Secretária da Educação (2009-2014), qual foi seu maior desafio?

CC – O desafio mais visível era a falta de vagas nas creches. O prefeito tinha se comprometido a aumentá-las consideravelmente, mas essa ampliação teria de garantir qualidade também. Pesquisas indicam que creches sem qualidade fazem mal à criança. É melhor ela ficar com um adulto de referência, em casa, do que frequentar um espaço educativo ruim. A população do Rio de Janeiro é muito grande e iniciativas como esta requerem um trabalho articulado, porque quanto mais vagas são criadas, mais aumenta a demanda. Por isso, para que a mudança acontecesse com equilíbrio, seguimos um princípio básico para definir as ações, o da expansão com qualidade e equidade.

FMCSV – Você pode enumerar quais ações foram realizadas?

CC – Realizamos sete grandes ações na educação infantil, juntamente com a fantástica equipe de educadores do município:

1. Colocamos, progressivamente, professores nas creches. Já havia a figura do professor articulador, que exercia o papel de coordenador pedagógico. Mas boa parte da atenção à criança na creche era exercida pelo agente auxiliar, um profissional concursado que tinha apenas, como exigência para o cargo, o Ensino Fundamental completo. Por isso, oferecemos o curso de Magistério a todos os auxiliares de creches que quiseram cursá-lo e, em seguida, abrimos concurso público para professor de Educação Infantil, cargo que criamos para esta importante etapa. Os que passaram foram nomeados professores, junto aos novos profissionais aprovados no certame. O objetivo era ter um professor em cada sala.

2. Construímos prédios pensados para esta etapa tirando as crianças pequenas, de 4 e 5 anos, das escolas grandes, com alunos adolescentes. Criamos os EDIs (Espaços de Desenvolvimento Infantil) com tudo o que é necessário para favorecer o desenvolvimento da criança e o trabalho dos educadores, com espaços abertos, livros em todas as salas, que foram desenhadas seguindo algumas ideias da proposta Montessoriana, dentre outros recursos focados na Primeira Infância. Construímos cerca de 150 EDIs com 150 crianças em média em cada uma. Nessa época, a área de Saúde do município também passava por reformulações para criar as Clínicas de Saúde da Família (postos de atendimento). Sugerimos que fossem construídas junto às EDIs. Essa iniciativa permitiu mais integração entre as áreas, além de facilitar as vacinações, as consultas ao pediatra, as orientações para os pais sobre a saúde e bem-estar de seus filhos.

3. Priorizamos o acesso à população de baixa renda. Por isso, direcionamos as vagas a crianças de famílias cadastradas no Programa Bolsa Família, alunos que, sem essa oportunidade, podem ter menos chance de sucesso na escola e na vida.

4. Adotamos um currículo de educação infantil, inspirando-nos nos parâmetros curriculares que já existiam, mas indo além, definindo expectativas de aprendizagem para as crianças menores, o que facilitou o planejamento para a aquisição de materiais, a capacitação dos professores, a estruturação da carga horária, centrada em um brincar mais solto e livre, mas com intencionalidade pedagógica clara.

5. Abrimos os EDIs aos pais de crianças que não tinham conseguido vagas nas creches ou que optaram por não levar seus filhos à escola. Três sábados por mês eles se reuniam para participar de cursos ministrados por profissionais da educação, da saúde e da assistência social. Recebiam orientações de como estimular as crianças, ler para elas, como cuidar de bebês, sobre a importância do vínculo. Cada espaço aberto ao Curso de Pais contava com uma biblioteca circulante de livros de bebês e os pais eram orientados a como ler com os filhos (mesmo que eventualmente iletrados) e a como fazer da leitura um momento afetivo para a família.

6. Criamos uma transição mais suave da pré-escola para o primeiro ano de alfabetização, trabalhando a consciência fonética, intensificando a leitura e a presença dos livros na sala. Passamos também a organizar uma semana de alfabetização, a cada ano, reunindo professores de educação infantil e os do 1º ao 3º ano para criar essa continuidade.

7. Investimos em avaliação para permitir melhoria contínua da Educação Infantil, seja a avaliação do desenvolvimento da criança, por meio dos cadernos de registros para que pais e professores pudessem acompanhar a sua evolução, como a avaliação institucional, do trabalho do EDI. Também monitoramos o desenvolvimento das crianças, durante três anos, por meio de uma pesquisa estruturada pelo economista Ricardo Paes de Barros. Treinamos os educadores para fazer esse acompanhamento e foi bem interessante porque pudemos aperfeiçoar e desenvolver atividades melhores para os EDIs.

(acesso em 26/06/16)

quinta-feira, 23 de junho de 2016

A ESQUERDA e os EVANGÉLICOS



A ESQUERDA e os EVANGÉLICOS
Entrevista do Professor  Roberto Dutra

 “Há cegueira da esquerda para entender a nova classe trabalhadora”
São Paulo 5 JUN 2016

Compõem hoje a maior bancada evangélica da história do Congresso brasileiro 75 deputados federais e três senadores, o que faz com que, cada vez mais, suas posições e acordos tenham relevância no cenário político. Para Roberto Dutra, doutor em sociologia pela Universidade Humboldt de Berlim e professor da Universidade Estadual do norte Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf), o posicionamento dos congressistas, contudo, não deve ser confundido com as convicções do eleitorado evangélico como um todo. Em um momento em que esse grupo político se uniu em torno do impeachment e de teses conservadoras no campo dos costumes, Dutra avalia em entrevista ao EL PAÍS os reflexos da interferência da religião na política e com que olhos os fiéis enxergam isso. Leia abaixo os principais destaques da conversa.

Pergunta. Existem hoje temas específicos que motivam o voto do eleitorado evangélico?

Resposta. São vários temas, mas há dois eixos temáticos que têm se destacado. O primeiro é a questão da moral e dos costumes que, contudo, até agora foi determinante apenas em eleições legislativas. Isso não quer dizer que essa temática não possa se tornar central em algum momento nas executivas, mas, por enquanto, ela depende muito mais da instrumentalização política que líderes de perfil religioso têm feito dela. Falar de costumes tem atraído um eleitorado, mas o que realmente explica as motivações do comportamento eleitoral, não só dos evangélicos, mas de todas as classes populares – considerando aí que a maior parte dos evangélicos pertence às classes populares – é o eixo do bem estar social. A preocupação é muito mais prática: saúde, educação e programas sociais.

P. A bancada evangélica votou pelo impeachment de Dilma Rousseff e tem expressado apoio a Michel Temer. Essa adesão é transferível ao eleitorado evangélico?

R. É difícil fazer uma previsão, mas eu acredito que há uma tendência do Governo Temer tentar usar a pauta dos costumes para fidelizar esse eleitorado evangélico mais pobre, que, contudo, tende a se distanciar dele na medida em que ele adotar uma política socialmente insensível de redução do gasto social. Nós não podemos pegar um momento como esse, em que a grande polarização ideológica e cultural leva a um fortalecimento da pauta dos costumes, e projetar isso no comportamento eleitoral das eleições deste ano ou de 2018. O voto religioso é circunstancial e muito mais presente nas eleições legislativas do que nas executivas. Por isso, eu acredito que se o Governo Temer não for capaz de fazer uma política social minimamente satisfatória do ponto de vista dessa população, ele não vai conseguir o apoio dela.

P. E por que o discurso moralista de políticos religiosos perde força nas eleições majoritárias?

R. Por razões próprias da política. Você consegue angariar um número grande de votos para eleger um deputado como o Bolsonaro, fazê-lo o mais votado. Mas na eleição do executivo, a maior parte do eleitorado não vota por religião e é também alimentada com informações que servem para descredenciar o perfil religioso do candidato religioso. Foi o caso do Marcelo Crivella (PRB), que perdeu a eleição para Governador do Rio de Janeiro de forma avassaladora para o Luiz Fernando Pezão (PMDB). No final, a vinculação do Crivella à Igreja Universal do Reino de Deus atrapalhou. Tanto é que dizem por aí que o Crivella está pensando em se desvincular do PRB, aderindo a um partido não religioso. Ao contrário do que se pensa, o eleitorado brasileiro tem bom senso. Elegemos um presidente sociólogo, um presidente operário e uma presidenta guerrilheira. É um eleitorado que não é tão conservador como se imagina.

"O voto religioso é circunstancial e muito mais presente nas eleições legislativas do que nas executivas. Por isso, eu acredito que se o Governo Temer não for capaz de fazer uma política social minimamente satisfatória do ponto de vista dessa população, ele não vai conseguir o apoio dela"

P. De qualquer jeito, a bancada evangélica tem crescido em número e importância nos últimos anos. O que explica o crescimento?

R. A extrema facilidade com que os líderes religiosos pentecostais lidam com as regras da política. É a capacidade dos evangélicos buscarem a vida política através do pragmatismo. O Edir Macedo, por exemplo, apoiou o Governo Dilma até recentemente. Se acontecesse uma improvável volta de Dilma daqui alguns meses, não tenho dúvidas de que ele estaria pronto para apoiá-la novamente. Também é importante dizer que é um equívoco falar em coesão da bancada religiosa. A Igreja Universal, por exemplo, tem uma estratégia de atuação parlamentar bem diferente da Assembleia de Deus. Só há união em momentos específicos, como agora.
P. E não há interferência direta de algumas igrejas no processo eleitoral?

R. Hoje há, de fato, igrejas aparelhadas. São verdadeiras redes que grandes líderes políticos, como Eduardo Cunha, oferecem como recurso político para outros líderes. O que vemos é que o púlpito tem fidelizado muito para o legislativo. Mas a curiosidade é que, do ponto de vista programático, o repertório do sucesso das eleições legislativas dos evangélicos é um repertório corporativo. É mais algo do tipo “vote no deputado porque ele vai defender nossa igreja” e menos “vote no deputado porque ele é contra o aborto”. Costume e moral não são os fatos predominantes para explicar o voto. É muito mais o sentimento de corpo mesmo, que é instrumentalizado pelos pastores. Então, o que eu arrisco dizer é que existe, sim, um crescimento grande da instrumentalização política das igrejas, mas isso não é uma garantia de votos e pode, em determinado momento, virar até motivo de debandada de fiéis.

P. Por quê?

R. Ser evangélico não é pré-requisito de voto para o eleitorado evangélico. As pessoas observam aquilo que a mídia fala delas, a imagem que é projetada sobre elas. Ficam preocupadas com a interferência de líderes evangélicos na política. Se há um movimento crescente de transformação das igrejas em curral eleitoral, por outro lado, aumenta o sentimento de muitos fiéis de que eles estão sendo feitos de palhaços pelo pastor. E ao mesmo tempo em que aumenta a politização conservadora da religião, aumenta também o sentimento de que a fé das pessoas está sendo manipulada por interesses próprios. E aí a concorrência religiosa é fatal. O Brasil está em plena modernidade religiosa. Caso esse sentimento dos fiéis aumente, pode surgir uma variável de dinamização do próprio mercado religioso.

"Se há um movimento crescente de transformação das igrejas em curral eleitoral, por outro lado, aumenta o sentimento de muitos fiéis de que eles estão sendo feitos de palhaços pelo pastor"

P. Você identifica em algum grupo específico esse olhar mais crítico?

R. Talvez nos jovens. Hoje há uma geração de jovens que já pode ser chamada de “evangélicos não praticantes”. Uma coisa é você ser convertido para uma religião evangélica, outra é você nascer nessa cultura. Aí é natural que você olhe de modo mais distanciado. De qualquer jeito, é importante não confundir os líderes políticos que têm um perfil religioso – ou seja, líderes políticos que tem na religião um recurso de poder e mobilização eleitoral – com as formas de comportamento, consciência e visão de mundo dos evangélicos como um todo. Além disso, apesar de óbvio, é necessário dizer que os evangélicos também são heterogêneos. De modo que há na classe média brasileira intelectualizada e, inclusive, de esquerda, um preconceito muito grande contra os evangélicos. Há a premissa de que eles são burros, que eles não sabem olhar com distanciamento a pauta política do Feliciano, do Malafaia, do Pastor Everaldo, do Bolsonaro.

P. E como esse distanciamento da esquerda aparece de forma prática?

R. Ela não consegue ver a possibilidade de disputar a fidelidade eleitoral e ideológica desse público. Dou o exemplo mais forte. Um tema central na vida cotidiana dos evangélicos é a família, mas a esquerda taxa isso de puro conservadorismo. A única alternativa política que tem tematizado o tema da família é – em uma democracia como a nossa, e eu diria que em várias outras também – a da direita. Ou seja, é justamente quem fala para os evangélicos: a família corre risco porque os homossexuais, a ideologia de gênero e os “esquerdopatas” estão ameaçando ela. Sem outra explicação, muitas vezes o indivíduo aceita essa mesma. Assim, a identificação dos evangélicos com a pauta política de seus líderes vem em alguns casos por pura falta de alternativa e compreensão dos setores ditos mais esclarecidos da sociedade que não conseguem compreender que o tema da família não é necessariamente conservador.

P. E por que esse tema tem tanto apelo?

R. Por razões de classe social. Os evangélicos se dividem, basicamente, em dois tipos de classe, que eu e o grupo de pesquisadores em torno do sociólogo Jessé Souza, costumamos dividir como ralé estrutural e batalhadores. O primeiro é um público completamente excluído das principais instituições da sociedade. Em geral, eles frequentam igrejas evangélicas que funcionam como uma espécie de pronto socorro espiritual. O segundo grupo tem uma vida familiar e social mais estável, com vínculos sociais mais fortes. Há uma proteção e solidariedade com que a ralé não conta. Para os dois públicos, contudo, a ameaça familiar é uma ameaça real e constante, seja por fatores econômicos, de alcoolismo ou de desestabilização social, como a falta de uma moradia decente. São problemas que as classes populares e excluídas enfrentam no mundo inteiro. Ora, só vai considerar o tema da família conservador quem não vê no abandono um problema cotidiano. Em resumo, os evangélicos agem muito mais por interesses práticos e que podem tomar rumos muito variados, de acordo com os partidos políticos que interpretam esses interesses práticos, do que propriamente por convicções conservadoras. Convicções que eles podem até ter, mas que não são tão claras e fortes como se imagina.

"Em resumo, os evangélicos agem muito mais por interesses práticos e que podem tomar rumos muito variados, de acordo com os partidos políticos que interpretam esses interesses práticos, do que propriamente por convicções conservadoras"

P. Mas onde entram as classes mais altas evangélicas nessa separação que você colocou?

R. Elas constituem um público mais tradicional, não pertencente historicamente às classes hegemônicas católicas brasileiras, que em geral faz parte das chamadas igrejas protestantes históricas ou de missão, como as igrejas Batista e Presbiteriana que, embora tenham copiado muitos dos ritos e das ideias das pentecostais, como Universal e Assembleia de Deus, mantêm um estilo, digamos, mais sóbrio. O público é formado por uma classe média ascendente com um determinado padrão de formação escolar e nível de renda mais estável. Mas esse é um público minoritário entre os evangélicos.
P. Pode resumir a diferença entre o protestantismo “clássico” e o pentecostalismo?

R. Ele é uma revolução protestante dentro da revolução protestante e surge na Igreja Metodista Wesleyana. John Wesley é um dos grandes fundadores do pentecostalismo, mas outros líderes menores popularizam ainda mais essa religião entre os negros dos EUA no final do século 19, início do 20. Ela se caracteriza por uma crença, muito grande, na força de Deus para mudar as coisas cotidianas. É o que podemos chamar de uma religiosidade mágica. No Brasil, isso chega em 1910, mas é só a partir da década de 1960, com a urbanização da pobreza, que o protestantismo brasileiro vai tomando a cara do pentecostalismo. Qual é a diferença básica? É que o protestantismo clássico não enfatiza tanto a presença cotidiana do espírito santo para resolver os problemas cotidianos das pessoas. O protestante batista não espera que Deus vá ajuda-lo a passar em um concurso público, já um pentecostal crê nisso. O pentecostalismo é mais popular que o protestantismo clássico. Por isso, com o tempo, vai virando a religião dos excluídos. Disso que nós denominamos ralé estrutural. É uma religião que oferece valor social para os excluídos: Deus tem um projeto para sua vida, você vale alguma coisa.

"Um tema central na vida cotidiana dos evangélicos é a família, mas a esquerda taxa isso de puro conservadorismo. A única alternativa política que tem tematizado o tema da família é a da direita"

P. Você disse que existe um preconceito de setores progressistas com os evangélicos. Há uma crítica de que o PT se afastou dos mais pobres nos últimos anos, perdendo espaço para as igrejas. Você concorda com essa avaliação?

R. Acredito que é uma explicação muito reducionista. Eu concordo que o PT se distanciou dos pobres, mas o que significa isso? O PT certamente não se distanciou dos pobres no sentido de fazer políticas sociais para os pobres. No entanto, o PT se distanciou culturalmente dos pobres. O PT é informado por uma visão de esquerda de que os pobres devem seguir um modelo de ser e agir que vem dos moldes dos sindicatos. Os pobres devem ser coletivistas. Os pobres devem se enquadrar em um viés de solidarismo anti-individualista. Toda vez que o PT encontra a valorização do indivíduo, a valorização da autonomia do indivíduo frente às intempéries da vida, que, em resumo, é a pregação cotidiana das igrejas pentecostais, o PT aponta o dedo acusatório: “É a pregação do individualismo, é a pregação do neoliberalismo dentro das igrejas”. O PT não entende essa filosofia liberal popular e nem o valor moral do individualismo que está por trás dela.

P. O que você quer dizer com “valor moral do individualismo”?


R. É a ideia de que para ser alguém valoroso na sociedade é preciso ser um indivíduo respeitado em sua privacidade, em seu projeto de vida. De modo que há, de forma muito presente nas igrejas, essa cultura da valorização da iniciativa individual. E isso não significa a negação da solidariedade. Acredito que há uma cegueira do PT em compreender a alma e a cultura dessa nova classe trabalhadora que não é formada no sindicato e que hoje é a maior parte dos brasileiros pobres e remediados do país. Esse é o distanciamento que existe, mas ele não é exclusivo do PT. A esquerda de forma geral não entendeu que o sonho dessa nova classe trabalhadora é, muitas vezes, ter uma empresa própria, ser um empreendedor. Há muitas semelhanças com a população dos EUA, por exemplo. É um liberalismo popular que não é, necessariamente, conservador. Hoje, esses ideais liberais de autonomia e afirmação do indivíduo estão em disputa e os conservadores têm conseguido capturá-los com mais eficiência.

segunda-feira, 6 de junho de 2016

De como Reinaldo Azevedo elogia Olavo de Carvalho-02-09-2013



“O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota”
Por: Reinaldo Azevedo  02/09/2013 às 5:25





É o título de uma coletânea de textos de autoria do filósofo sem carteirinha, crachá ou livro-ponto Olavo de Carvalho (foto), lançado há duas semanas pela Editora Record (615 páginas, R$ 51,90). Os artigos foram selecionados e organizados por Felipe Moura Brasil, um jovem de vinte e poucos — bem poucos — anos, que também cuida de notas explicativas e referências bibliográficas que remetem o leitor tanto à vasta obra do próprio Olavo como à teia de autores e temas com os quais seus textos dialogam ou polemizam. Moura Brasil informa que a seleção obedeceu a seu gosto pessoal e à necessidade de partilhar a sua experiência de leitor e estudioso da obra de Olavo. Esse moço é a prova de que a inteligência e a autonomia intelectual sobrevivem mesmo aos piores tempos. E os piores tempos podem não ser aqueles em que o amor à liberdade é obrigado a resistir na clandestinidade — afinal, resta a esperança no fundo da caixa —, mas aqueles em que a divergência se torna, por si, uma violência inaceitável. Nesse caso, a própria esperança começa a correr riscos. O livro, o que não chega a ser uma surpresa, provocou um enorme silêncio — que é uma das formas do moderno exercício da violência. 

Os leitores, no entanto, estão fazendo a sua parte, e ele já figura em 10º lugar na lista dos “Mais Vendidos”, na categoria “Não-Ficção”, na VEJA desta semana.


“O Mínimo…” reúne, basicamente, artigos que Olavo publicou em jornais e revistas, inclusive nas revistas “República” e “BRAVO!”, das quais fui redator-chefe — e a releitura, agora, em livro, me remeteu àqueles tempos. Impactam ainda hoje e podiam ser verdadeiros alumbramentos há 10, 12, 13 anos, quando o autor, é forçoso admitir, via com mais aguda vista do que todos nós o que estava por vir. Olavo é dono de uma cultura enciclopédica — no que concerne à universalidade de referências —, mas não pensa por verbetes. E isso desperta a fúria das falanges do ódio e do óbvio. Consegue, como nenhum outro autor no Brasil — goste-se ou não dele —, emprestar dignidade filosófica à vida cotidiana, sem jamais baratear o pensamento. Isso não quer dizer que não transite — e as falanges não o fustigam menos por isto; ao contrário — com maestria no terreno da teoria e da história. É autor, por exemplo, da monumental — 32 volumes! — “História Essencial da Filosofia” (livros acompanhados de DVDs). Alguns filósofos de crachá e livro-ponto poderiam ter feito algo parecido — mas boa parte estava ocupada demais doutrinando criancinhas… Há o Olavo de “A Dialética Simbólica” ou de “A Filosofia e seu Inverso”, e há este outro, que é expressão daquele, mas que enfrenta os temas desta nossa vida besta, como disse o poeta, revelando o sentido de nossas escolhas e, muito especialmente, das escolhas que não fazemos.


O livro é dividido em 25 capítulos ou macrotemas: Juventude, Conhecimento, Vocação, Cultura, Pobreza, Fingimento. Democracia, Socialismo, Militância, Revolução, Intelligentzia, Inveja, Aborto, Ciência, Religião, Linguagem, Discussão, Petismo, Feminismo, Gayzismo, Criminalidade, Dominação, EUA, Libertação e Estudo. Cada um deles reúne um grupo de textos, e alguns se desdobram em subtemas, como a espetacular seleção de textos de “Revolução”, reunidos sob rubricas distintas, como, entre outras, Globalismo, Manipulação e Capitalistas X Revolucionários.
Vivemos tempos um tanto brutos, hostis ao pensamento. Vivemos a era em que o sentimento de “justiça” ou o de “igualdade” — com frequência, alheios ou mesmo refratários a qualquer noção de direito — reivindicam um estatuto moralmente superior a conceitos como verdade e realidade; estes seriam, por seu turno, meras construções subjetivas ou de classe, urdidas com o propósito de provocar a infelicidade geral. Olavo demole com precisão e brilho a avalanche de ideias prontas, tornadas influentes pelo “imbecil coletivo” e que vicejam muito especialmente na imprensa — fenômeno enormemente potencializado pelas redes sociais.

Em 2003, o jornal “O Globo” ainda publicava textos como “Orgulho do Fracasso”, de Olavo. E se podia ler (em azul):



Língua, religião e alta cultura são os únicos componentes de uma nação que podem sobreviver quando ela chega ao término da sua duração histórica. São os valores universais, que, por servirem a toda a humanidade e não somente ao povo em que se originaram, justificam que ele seja lembrado e admirado por outros povos. A economia e as instituições são apenas o suporte, local e temporário, de que a nação se utiliza para seguir vivendo enquanto gera os símbolos nos quais sua imagem permanecerá quando ela própria já não existir.

(…)
A experiência dos milênios, no entanto, pode ser obscurecida até tornar-se invisível e inconcebível. Basta que um povo de mentalidade estreita seja confirmado na sua ilusão materialista por uma filosofia mesquinha que tudo explique pelas causas econômicas. Acreditando que precisa resolver seus problemas materiais antes de cuidar do espírito, esse povo permanecerá espiritualmente rasteiro e nunca se tornará inteligente o bastante para acumular o capital cultural necessário à solução daqueles problemas. O pragmatismo grosso, a superficialidade da experiência religiosa, o desprezo pelo conhecimento, a redução das atividades do espírito ao mínimo necessário para a conquista do emprego (inclusive universitário), a subordinação da inteligência aos interesses partidários, tais são as causas estruturais e constantes do fracasso desse povo. Todas as demais explicações alegadas — a exploração estrangeira, a composição racial da população, o latifúndio, a índole autoritária ou rebelde dos brasileiros, os impostos ou a sonegação deles, a corrupção e mil e um erros que as oposições imputam aos governos presentes e estes aos governos passados — são apenas subterfúgios com que uma intelectualidade provinciana e acanalhada foge a um confronto com a sua própria parcela de culpa no estado de coisas e evita dizer a um povo pueril a verdade que o tornaria adulto: que a língua, a religião e a alta cultura vêm primeiro, a prosperidade depois.

(…)
Retomo
Grande Olavo de Carvalho! Dez anos depois, com o país nessa areia, como ignorar a força reveladora das palavras acima? Olhem à nossa volta. O que temos senão um governo incompetente, que fez refém ou tornou dependente (com Bolsa BNDES, Bolsa Juro, Bolsa Isenção Tributária) uma elite não muito iluminada, combatido, o que é pior, por uma oposição que não consegue encetar uma crítica que vá além do administrativismo sem imaginação, refratária ao debate, que foge do confronto de ideias como Lula foge dos livros e Dilma da sintaxe?

O país emburrece. Eu mesmo, mais de uma vez, em ambientes supostamente afeitos ao pensamento, à reflexão e à leitura, pude constatar o processo de satanização do contraditório. É mais difícil travar com intelectuais (ou, sei lá, com as classes supostamente ilustradas) um debate racional sobre a legalização do aborto do que com um homem ou uma mulher do povo, de instrução mediana. E não porque aqueles tenham os melhores argumentos. Ao contrário: têm os piores. Olham para a sua cara e dizem, com certo ar de trunfo, como se tivessem encontrado a verdade definitiva: “É uma questão dos direitos reprodutivos da mulher”. Digamos que fosse… Esses tais “direitos reprodutivos” teriam caído da árvore da vida, como caiu a maçã para Newton, ou são uma construção? Por que estaria acima do debate?

Mais um pouco das palavras irretocáveis de Olavo (em azul):

Na tipologia de Lukács, que distingue entre os personagens que sofrem porque sua consciência é mais ampla que a do meio em que vivem e os que não conseguem abarcar a complexidade do meio, a literatura brasileira criou um terceiro tipo: aquele cuja consciência não está nem acima nem abaixo da realidade, mas ao lado dela, num mundo à parte todo feito de ficções retóricas e afetação histriônica. Em qualquer outra sociedade conhecida, um tipo assim estaria condenado ao isolamento. Seria um excêntrico.

No Brasil, ao contrário, é o tipo dominante: o fingimento é geral, a fuga da realidade tornou-se instrumento de adaptação social. Mas adaptação, no caso, não significa eficiência, e sim acomodação e cumplicidade com o engano geral, produtor da geral ineficiência e do fracasso crônico, do qual em seguida se busca alívio em novas encenações, seja de revolta, seja de otimismo. Na medida em que se amolda à sociedade brasileira, a alma se afasta da realidade — e vice-versa. Ter a cabeça no mundo da lua, dar às coisas sistematicamente nomes falsos, viver num estado de permanente desconexão entre as percepções e o pensamento é o estado normal do brasileiro. O homem realista, sincero consigo próprio, direto e eficaz nas palavras e ações, é que se torna um tipo isolado, esquisito, alguém que se deve evitar a todo preço e a propósito do qual circulam cochichos à distância.
Meu amigo Andrei Pleshu, filósofo romeno, resumia: “No Brasil, ninguém tem a obrigação de ser normal.” Se fosse só isso, estaria bem. Esse é o Brasil tolerante, bonachão, que prefere o desleixo moral ao risco da severidade injusta. Mas há no fundo dele um Brasil temível, o Brasil do caos obrigatório, que rejeita a ordem, a clareza e a verdade como se fossem pecados capitais. O Brasil onde ser normal não é só desnecessário: é proibido. O Brasil onde você pode dizer que dois mais dois são cinco, sete ou nove e meio, mas, se diz que são quatro, sente nos olhares em torno o fogo do rancor ou o gelo do desprezo. Sobretudo se insiste que pode provar.

Sem ter em conta esses dados, ninguém entende uma só discussão pública no Brasil. Porque, quando um brasileiro reclama de alguma coisa, não é que ela o incomode de fato. Não é nem mesmo que exista. É apenas que ele gostaria de que existisse e fosse má, para pôr em evidência a bondade daquele que a condena. Tudo o que ele quer é dar uma impressão que, no fundo, tem pouco a ver com a coisa da qual fala. Tem a ver apenas com ele próprio, com sua necessidade de afeto, de aplauso, de aprovação. O assunto é mero pretexto para lançar, de maneira sutil e elegante, um apelo que em linguagem direta e franca o exporia ao ridículo.

Esse ardil psicológico funda-se em convenções provisórias, criadas de improviso pela mídia e pelo diz que diz, que apontam à execração do público umas tantas coisas das quais é bom falar mal. Pouco importa o que sejam. O que importa é que sua condenação forma um “topos”, um lugar-comum: um lugar no qual as pessoas se reúnem para sentir-se bem mediante discursos contra o mal. O sujeito não sabe, por exemplo, o que são transgênicos. Mas viu de relance, num jornal, que é coisa ruim. Melhor que coisa ruim: é coisa de má reputação. Falando contra ela, o cidadão sente-se igual a todo mundo, e rompe por instantes o isolamento que o humilha.

Essa solidariedade no fingimento é a base do convívio brasileiro, o pilar de geleia sobre o qual se constroem uma cultura e milhões de vidas. Em outros lugares as pessoas em geral discutem coisas que existem, e só as discutem porque perceberam que existem. Aqui as discussões partem de simples nomes e sinais, imediatamente associados a valores, ao ruim e ao bom, a despeito da completa ausência das coisas consideradas.

Não se lê, por exemplo, um só livro de história que não condene a “história oficial” — a história que celebra as grandezas da pátria e omite as misérias da luta de classes, do racismo, da opressão dos índios e da vil exploração machista. Em vão buscamos um exemplar da dita-cuja. Não há cursos, nem livros, nem institutos de história oficial. Por toda parte, nas obras escritas, nas escolas de crianças e nas academias de gente velha, só se fala da miséria da luta de classes, do racismo, de índios oprimidos e da vil exploração machista. Há quatro décadas a história militante que se opunha à história oficial já se tornou hegemônica e ocupou o espaço todo. Se há alguma história oficial, é ela própria.
Mas, sem uma história oficial para combater, ela perderia todo o encanto da rebeldia convencional, pondo à mostra os cabelos brancos que assinalam sua identidade de neo-oficialismo consagrado — balofo, repetitivo e caquético como qualquer academismo. Direi então que açoita um cavalo morto? Não é bem isso. Ela própria é um cavalo morto. Um cavalo morto que, para não admitir que está morto, escoiceia outro cavalo morto. Todo o “debate brasileiro” é uma troca de coices num cemitério de cavalos.


Encerro
Leia esse livro de Olavo de Carvalho. Ninguém, no Brasil, escreve com a sua força e a sua clareza. Tampouco parece fácil rivalizar com a sua cultura, fruto da dedicação, do trabalho no claustro, da aplicação, não da busca de brilharecos. Leia Olavo: contra o ódio, contra o óbvio, contra os idiotas e a favor de si mesmo.