De como se implantaria uma DITADURA no Brasil se seguissem as ideias
emanadas de jornalistas, comentaristas, juízes, procuradores, desembargadores,
ministros do STF e as paixões/opiniões sobejamente exaradas nas redes sociais,
baseadas em meras opiniões pessoais, sem se levar em consideração o que diz a
lei, a Constituição, o Código Penal, o Código de Processo Penal, tudo isso
fundamentado no fato de que o que vale é a convicção e não as provas e tudo que
as leis dizem ou disseram.
Ou: um exercício de lógica baseada na estupidez...
SENSO INCOMUM
Distopia: o dia em que o STF, com 21 ministros, fechou o
Congresso
12 de julho de 2018, 8h00
Resumo: 13 novos ministros assumem no Novo STF, entre
eles Camarotti, eleito novo presidente da corte, Datena, Janaina, Cabo
Antoninho, um professor de cursinho e dois comentaristas da ConJur.
Aquilo que o conceito de utopia representa
deve ser o maior exemplo articulável de algo alheio à nossa realidade como tal.
Basta ver que chamar uma ideia, um argumento, um ponto de vista de utópico é
basicamente o mesmo que classificá-lo como impossível de ser realizado (realizado,
isto é, concretizado, trazido à esfera do real).
Até nisso difere-se sua antítese. Para quem ainda não
conhece o conceito de distopia, pense justamente no contrário de
uma utopia. Exemplos culturais não faltam: desde o célebre 1984, de
Orwell, à contemporânea série The Handmaid’s Tale (fundamentalistas
assumem o poder nos EUA), todos expressam, em alguma medida, uma espécie
de utopia negativa. Só que, antiteticamente ao conceito de utopia,
as distopias, por vezes, têm uma relação muito próxima — assustadoramente
próxima — com a realidade que vivenciamos.
Explico: muitas vezes, as distopias são utilizadas como um
recurso pelo qual aquele que o concebe transmite uma espécie de aviso aos seus
interlocutores. Se, com a utopia, alguém diz aquilo que desejaria
que fosse, com a distopia, a partir daquilo que é,
diz-se o que se pode vir a ser. Com 1984, Orwell não
está apenas escrevendo sobre uma sociedade totalitária; está alertando sobre os
rumos que o mundo parecia tomar à época. Se ele acertou? Deixo que o leitor
interprete e diga.
Por que falo tudo isso? Porque, como Orwell, quero
apresentar a vocês minha distopia. Se o cenário que imagino parece fidedigno
diante de nosso cenário atual? Deixo que o leitor interprete e diga.
Vamos lá. Vamos à minha ficção.
***
Imagine, leitor, que, nesta manhã de quinta-feira, você
percebe que alguma coisa fez com que você dormisse por muito mais tempo que o
normal. Na medida em que o dia vai passando, você vai percebendo que muita
coisa mudou desde o dia anterior.
Com os demais candidatos batendo cabeça e Lula preso — Moro,
cognominado no novo regime de Grundmoro (algo como a norma fundamental, a
Grundnorm), proibira sua libertação em despacho proferido em férias do interior
de Portugal —, Bolsonaro foi eleito já no primeiro turno. Ganhou com 33%,
porque os votos dados a Lula foram anulados. Festa na avenida Paulista. A
GloboNews instalou um gabinete especial às margens do Paranoá para acompanhar a
formação do novo governo. Claro, junto estavam aqueles professores de Direito
do RJ que servem de escada a Camarotti e Cia. Que coisa incrível: as
opiniões deles sempre coincidem com as dos jornalistas da GloboNews.
A primeira emenda constitucional (PEC)
bolsonariana aumentou
o número de ministros do STF para 21 membros. Bolsonaro (de ora em diante, PB)
seguiu o que fora feito na Polônia e Venezuela. Afinal, havia prometido na
campanha que aumentaria o STF de 11 para 21 ministros, conforme constou na
revista
Veja e na
Folha (ler
aqui). PB, na campanha, criticou fortemente o STF (
aqui). Com três aposentadorias ocorridas em 2018, aumentou
para 13 o número de vagas para nomeação a partir de 1º de janeiro de 2019.
Formaram-se cotas (sem problemas com essas). Professores: Janaína e um
professor de cursinho; juízes: uma desembargadora do RJ, conhecida por
seus
tweets, um juiz famoso que usa a Bíblia na audiência, um
procurador que faz jejum; dois comentaristas da
ConJur, sendo que
um escolhido entre os que mais destilaram ódio contra a coluna "Senso
Incomum" e o outro escolhido entre seus pares, que poderiam atuar
inclusive com seus
nicknames.
Cota pessoal do PB: Gerson Camarotti,
Datena e Wiliam Waack. Não, Merval Pereira não foi para o STF,
e sim para o Ministério da Verdade. Os outros três: Cabo Antoninho,
indicado pela base aliada do novo regime, Kim Katiguri (ou algo parecido com
isso), preenchendo a cota de asiáticos e um ministro rotativo (nova categoria
criada por sugestão do ministro Camarotti), representando a bancada da bala,
dos agrotóxicos (agro é pop) e dos banqueiros. Não, Moro também não foi, pois
preferiu ser o Mentor Geral da República (MEGER), cargo acima do Ministério da
Justiça. Os demais ministérios foram ocupados por generais, como era a
promessa de PB.
O primeiro fato marcante no Novo STF — assim passou a se
chamar (NSTF)
[1] — foi a retirada do ministro Toffoli
da Presidência da corte. A partir do
princípio da colegialidade futura (PCF),
caberia à nova maioria nomear o presidente. O eleito foi o próprio ministro
Camarotti, para mandato de 20 anos (na Presidência do NSTF).
Depois da última greve dos caminhoneiros em setembro de 2018
— na qual o lema era “intervenção militar já” —, já havia quase tudo sido
vendido-privatizado, dos hospitais públicos, Embraer, Braskem, Detrans à
Petrobras, passando pela Eletrobras e todas as estradas federais e vicinais
(venderam até o laguinho do Planalto, os prédios da Explanada dos Ministérios e
o Palácio do governo, que passaram a pagar aluguel para uma imobiliária chamada
MBL), PB teve pouco trabalho no que restava para privatizar. Liberou-se também
a exploração da Amazônia (afinal, pouco índio e muita terra). O ministro das
Privatizações, da cota das Lojas Riachuelo, era incansável. Foi fácil vender o
sistema prisional para um consórcio americano-tailandês (o preço teve deságio
de 60% por causa da superlotação). A base aliada do PB, comandada pelo deputado
Cabo Russo, passou um rolo compressor na pequena oposição no parlamento.
Só deu problema na hora de vender o SUS: racha na base
aliada. Metade queria vender para os EUA; a outra metade, para os chineses. A
GloboNews enviou repórteres à China e aos EUA e, de lá, mostravam as maravilhas
dos sistemas de saúde desses dois países (professores de Direito do RJ
comentaram o episódio, concordando com a GloboNews). A questão se arrastava e a
oposição entrou em obstrução. Nada mais se votava. Congresso parou. Merval,
agora falando em rede nacional, chamava o povo para as ruas. Camarotti
articulava com PB uma solução.
PB, então, consultou a NAGU (Nova AGU), que tomou uma medida
drástica: construiu cuidadosamente, uma ADI com pedido de interpretação
conforme à Constituição para fechar o Congresso, passando ao NSTF a função de
legislar. A argumentação, douta e magnífica — para se ter uma ideia, na petição
da ADI constou o nome charmoso de
verfassungskonforme Auslegung zum
Abschluss des Parlaments —, passou logo a ser elogiada nos cursinhos,
palestras e
workshops. E, como fundamento principal, PB invocou
o
princípio do presidencialismo invertido (
Zasada
odwróconego prezydenckiego— “princípio” que fora invocado pelo presidente
polonês para aposentar compulsoriamente 27 ministros da Suprema Corte —
aqui), pelo qual o governo é dissolvido caso negue apoio ao
presidente.
O raciocínio é simples (e óbvio): se PB foi eleito, é porque o povo
queria que governasse; o parlamento, se não lhe der apoio, impede o avanço
iluminista do país; logo, em vez de inviabilizar o governo, inviabilize-se o
parlamento (aqui, para delírio dos pamprincipiologistas de Pindorama, foi
invocado o novo
Princípio da Proibição de Inviabilização do Governo –
PPIG). Binguíssimo.
Aliado a isso, a ADI se baseava no princípio da voz
das ruas (Prinzip des Sprachanrufs der Leute — tese
elogiadíssima na GloboNews), que havia sido invocado no ancien régime por
um conhecido ministro do VSTF e agora, como feitiço, voltava-se contra o
feiticeiro. A votação pelo fechamento do Parlamento foi 13x8. Justiça seja
feita, todos os 8 ministros do ancien STF votaram contra,
inclusive a ministra adepta da colegialidade.
Parte dos 8 ministros do VSTF achou absurdo que os ministros
do NSTF achassem que a voz das ruas e as opiniões pessoais dos ministros e de
PB pudessem valer mais que o texto da CF. O ministro-procurador invocou a
convicção e a fé no novo! Antes, jejuou. “Longa vida ao Direito 4.0”, disse! Já
o ministro da Bíblia invocou o artigo 142 da CF sobre as Forças Armadas (ele
havia já postado um tweet sobre isso), dizendo que ou o
NSTF decretaria a medida, ou poderia ser acionada a “clausula moderadora” do
artigo 142. A ministra do RJ que-posta-muito-no-face postou o longo voto
de quatro linhas no Twitter.
Já a ministra Janaina deu o voto em pé, invocando a tese da
aceleração da história e a teoria da graxa, fazendo menção a precedentes do
VSTF, especialmente daqueles ministros que sustentavam, no ancién
regime, que, entre a realidade social e a realidade normativa, tinha-se que
optar pela realidade social, a voz das ruas (claro que ela disse isso de outro
modo, mas um intérprete conseguiu sacar isso, mediante a linguagem de sinais).
Um dos “precedentes” citados por Janaina foi o do caso do indulto, em que o
relator do VSTF dissera que o Executivo não soubera entender o sentimento
popular. Ou seja, a voz do povo vale mais que a CF. Já os dois
ministros-comentaristas da ConJur votaram nesta linha:
“Direito é questão de prática. Não venham com essas coisas complicadas tipo
Lenio Streck”.
Os demais votos vencedores apenas repetiram os chavões: “O
Direito é aquilo que o NSTF diz que é”. Por vezes, Camarotti os ajudava.
Citaram, várias vezes, doutrina e precedentes de um ministro do VSTF, que se
sentiu extremamente desconfortável, aparteando os novos colegas — com
veemência. Houve forte discussão. Mas era tarde. Inês jazia morta
no meio do salão do Pretório Excelso. Claro, citaram também outros juristas
(realistas, voluntaristas e quejandos) que sempre sustentaram, em
livros e teses de doutorado, que o Direito-é-aquilo-que-o-Judiciário-diz-que-é.
Outros fechavam os votos espumando: “Há que ser prático. Pragmático. Não me
venham com esse negócio de teoria”. Enfim, a estandardização do Direito
vencera.
É. Assim se formou o novo Brasil — que, esqueci de dizer,
era agora com
z.
Brazil. Ah: com o Congresso fechado, o
SUS foi vendido para um consórcio EUA-China, com participação coreana-chinesa.
Finalmente, nada mais era público. Enfim, o Estado ficou mínimo. As ações do
novo Brazil foram lançadas no
Manhattan Connection. Tão mínimo era
o novo-estado que nem gastava mais com o parlamento, exatamente como queriam
radialistas, jornalistas, jornaleiros e taxistas (e juristas — estudantes e
carreiras jurídicas). A Justiça do Trabalho foi extinta, como
queriam Pazzianoto e o empresário Walter Schalka e
parcela majoritária do empresariado. A CLT foi revogada por um assento do NSTF.
Aposentadoria agora toda era privada (um fundo indiano-paquistanês comprou a
carteira), conforme a reforma da Previdência baixada também por um decreto
referendado por um assento do NSTF. As ruas das cidades também foram vendidas e
em cada uma o comprador pode colocar pedágio (para pessoas, carros, motos e
bicicletas). Não mais se exige licença ambiental, porque isso atrasava o
desenvolvimento. As universidades foram vendidas, é claro. Muitas, fechadas
(algumas já estavam). Foi liberado o uso de armas (até 5 por brazileiro), com
base em experiência empírica de alguns ministros e pesquisa do
pool das
universidades Matocagao I, Scheißwald III e Unifundo do Brasil, que mostra a
correção da tese “mais armas, mais paz, menos violência”. O Ministério da Paz
passou a cuidar das armas. Camarotti aprovou.
Voltou o ensino obrigatório de Moral e Cívica. Os autênticos
valores retornaram. Foi criado o Ministério dos Bons Costumes, regulamentando
as relações sexuais. E o ensino religioso se tornou obrigatório inclusive nos
cursos jurídicos, onde o Direito Penal foi substituído por Êxodo 22:6;
21:12; 21:16: 24:7 e Deuteronômio 22:25. Voltou também EPB
– Estudo dos Problemas Brasileiros. Refundaram o Mobral (neste caso, houve
muitos protestos — a multidão queria fazer, direto, sem atalhos, o curso de
Direito...).
Como ficou a advocacia no Novo Brazil? Bem, complicou
"um pouco" (vejam o futuro dos advogados no
filminho). Foi extinto o Exame de Ordem, a presunção da
inocência (já estava extinta desde 2016) e o devido processo legal. O CPP foi
transformado em Regimento Interno. O CPC? Bem, tudo passou a depender dos novos
assentos (AIAS).
Afinal, a advocacia vai servir para que no novo regime?
De todo modo, conto: a primeira súmula — agora chamada de AIA
[2] —
assento da
interpretação autêntica do NSTF — diz: “Todos julgamentos são
feitos a partir do princípio
in dubio pro societate”;
AIA 2:
Se a prova ilícita for obtida visando o bem da sociedade, vale;
AIA 3:
Se, de antemão, o réu assume a culpa, ou havendo provas conclusivas a critério
do delegado, este poderá aplicar a pena, segundo tabela do NCNJ;
AIA 4:
Fica vedado o uso de RESP e RE para rediscutir prisão de segundo grau;
AIA
5: Direitos humanos são só para humanos direitos
[3];
AIA 6: O não pagamento de
carnês de lojas e dívidas bancárias acarreta recolhimento da CNH, passaporte e
identidade, nos termos do artigo 139, IV, do CPC;
AIA 7: Entre a
moral e o Direito, deve-se optar pela Moral;
AIA 8. Nenhuma prisão
preventiva pode ultrapassar o prazo de 5 anos;
AIA 9: Juiz no gozo
de férias, mesmo estando no exterior, pode alterar ou recusar — por oportuna
precaução — o cumprimento de decisão de ministros e desembargadores, se com ela
não concordar;
AIA 10: "lava jato"
não precisa seguir regras de casos comuns.
A joia da coroa é o AIA 11: “Todos os atos
decorrentes destes AIAs são insuscetíveis de apreciação judicial; juízes e
tribunais, sob pena de demissão ou fechamento do tribunal, estão proibidos de
interpretar os AIAs, que são os novos e únicos precedentes do “sistema de
precedentes”, que são produtos de um ato de vontade do NSTF” (parece que alguns
dos defensores das teses do “sistema de precedentes” emplacaram a tese de que
os precedentes são produto de um ato de vontade. Venceram! Eis o novo!).
Ah, PB tinha receio de ter o poder usurpado pelo vice, do
MDB, depois que este divulgou uma carta aberta, na qual dizia “sentir-se
deixado de lado pelo presidente”. PB, assim, mandou projeto de AIA ao NSTF que,
de pronto, lançou o AIA 12: “Com base no princípio da precaução e do
princípio caracídeo hoplias malabaricus, o vice-presidente fica
suspenso até segunda ordem”.
Em meio a isso... Epa, hora de parar de escrever. Acaba de
ser lançado, por iniciativa dos Ministérios da Verdade, da Nova Inteligência,
dos Bons Costumes e da Mentoria Geral da República, uma Medida
Provisória-Permanente - MPP (não há mais parlamento) com o seguinte teor: “Fica
proibido o uso de livros que não sejam resumidos ou facilitados, abrangendo
esta proibição o ato de escrever colunas ou artigos em revistas”.
***
Essa, leitor, é minha distopia, na qual a inscrição na
bandeira do Brazil — que, no lugar de estrelas, agora tinha balas — agora
era “Guerra é paz. Liberdade é escravidão. Ignorância é força”.
Bom, isso é uma ficção. Torço contra minha distopia. Com
veemência!
[1] O que aconteceu com os demais
tribunais, com exceção do TST — que foi extinto junto com a Justiça do Trabalho
—, fica para outra coluna. Não há espaço na de hoje.
[2] É mera coincidência a sigla AIA, nada
tendo a ver com a tradução portuguesa da distopia
The Handmaid’s Tales —
O
Conto da Aia, de Margaret Atwood.
[3] Observação: por justiça, informo que
todas as súmulas foram aprovadas por 13 ministros, vencidos os 8 integrantes do
VSTF.
https://www.conjur.com.br/2018-jul-12/senso-incomum-distopia-dia-stf-21-ministros-fechou-congresso