terça-feira, 24 de setembro de 2019

ÍNTEGRA do DISCURSO do Presidente Bolsonaro na ONU, 24/09/2019



ÍNTEGRA do DISCURSO do Presidente Bolsonaro na ONU, 24/09/2019

"Senhor Presidente da Assembleia Geral, Tijjani Muhammad-Bande,
Senhor Secretário-Geral da ONU, António Guterres,
Chefes de Estado, de Governo e de Delegação,
Senhoras e Senhores,

Apresento aos senhores um novo Brasil, que ressurge depois de estar à beira do socialismo.
Um Brasil que está sendo reconstruído a partir dos anseios e dos ideais de seu povo.
No meu governo, o Brasil vem trabalhando para reconquistar a confiança do mundo, diminuindo o desemprego, a violência e o risco para os negócios, por meio da desburocratização, da desregulamentação e, em especial, pelo exemplo.

Meu país esteve muito próximo do socialismo, o que nos colocou numa situação de corrupção generalizada, grave recessão econômica, altas taxas de criminalidade e de ataques ininterruptos aos valores familiares e religiosos que formam nossas tradições.

Em 2013, um acordo entre o governo petista e a ditadura cubana trouxe ao Brasil 10 mil médicos sem nenhuma comprovação profissional. Foram impedidos de trazer cônjuges e filhos, tiveram 75% de seus salários confiscados pelo regime e foram impedidos de usufruir de direitos fundamentais, como o de ir e vir.
Um verdadeiro trabalho escravo, acreditem...
Respaldado por entidades de direitos humanos do Brasil e da ONU!

Antes mesmo de eu assumir o governo, quase 90% deles deixaram o Brasil, por ação unilateral do regime cubano. Os que decidiram ficar, se submeterão à qualificação médica para exercer sua profissão.
Deste modo, nosso país deixou de contribuir com a ditadura cubana, não mais enviando para Havana 300 milhões de dólares todos os anos.


A história nos mostra que, já nos anos 60, agentes cubanos foram enviados a diversos países para colaborar com a implementação de ditaduras.
Há poucas décadas tentaram mudar o regime brasileiro e de outros países da América Latina.
Foram derrotados!
Civis e militares brasileiros foram mortos e outros tantos tiveram suas reputações destruídas, mas vencemos aquela guerra e resguardamos nossa liberdade.

Na Venezuela, esses agentes do regime cubano, levados por Hugo Chávez, também chegaram e hoje são aproximadamente 60 mil, que controlam e interferem em todas as áreas da sociedade local, principalmente na Inteligência e na Defesa.
A Venezuela, outrora um país pujante e democrático, hoje experimenta a crueldade do socialismo.
O socialismo está dando certo na Venezuela!
Todos estão pobres e sem liberdade!

O Brasil também sente os impactos da ditadura venezuelana. Dos mais de 4 milhões que fugiram do país, uma parte migrou para o Brasil, fugindo da fome e da violência. Temos feito a nossa parte para ajudá-los, através da Operação Acolhida, realizada pelo Exército Brasileiro e elogiada mundialmente.
Trabalhamos com outros países, entre eles os EUA, para que a democracia seja restabelecida na Venezuela, mas também nos empenhamos duramente para que outros países da América do Sul não experimentem esse nefasto regime.

O Foro de São Paulo, organização criminosa criada em 1990 por Fidel Castro, Lula e Hugo Chávez para difundir e implementar o socialismo na América Latina, ainda continua vivo e tem que ser combatido.

Senhoras e Senhores,
Em busca de prosperidade, estamos adotando políticas que nos aproximem de países outros que se desenvolveram e consolidaram suas democracias.
Não pode haver liberdade política sem que haja também liberdade econômica. E vice-versa. O livre mercado, as concessões e as privatizações já se fazem presentes hoje no Brasil.

A economia está reagindo, ao romper os vícios e amarras de quase duas décadas de irresponsabilidade fiscal, aparelhamento do Estado e corrupção generalizada. A abertura, a gestão competente e os ganhos de produtividade são objetivos imediatos do nosso governo.
Estamos abrindo a economia e nos integrando às cadeias globais de valor. Em apenas oito meses, concluímos os dois maiores acordos comerciais da história do país, aqueles firmados entre o Mercosul e a União Europeia e entre o Mercosul e a Área Europeia de Livre Comércio, o EFTA. Pretendemos seguir adiante com vários outros acordos nos próximos meses.

Estamos prontos também para iniciar nosso processo de adesão à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Já estamos adiantados, adotando as práticas mundiais mais elevadas em todo os terrenos, desde a regulação financeira até a proteção ambiental.

Senhorita YSANY KALAPALO, agora vamos falar de Amazônia.

Em primeiro lugar, meu governo tem um compromisso solene com a preservação do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável em benefício do Brasil e do mundo.
O Brasil é um dos países mais ricos em biodiversidade e riquezas minerais.
Nossa Amazônia é maior que toda a Europa Ocidental e permanece praticamente intocada. Prova de que somos um dos países que mais protegem o meio ambiente.
Nesta época do ano, o clima seco e os ventos favorecem queimadas espontâneas e criminosas. Vale ressaltar que existem também queimadas praticadas por índios e populações locais, como parte de sua respectiva cultura e forma de sobrevivência.

Problemas qualquer país os tem. Contudo, os ataques sensacionalistas que sofremos por grande parte da mídia internacional devido aos focos de incêndio na Amazônia despertaram nosso sentimento patriótico.

É uma falácia dizer que a Amazônia é patrimônio da humanidade e um equívoco, como atestam os cientistas, afirmar que a nossa floresta é o pulmão do mundo.
Valendo-se dessas falácias, um ou outro país, em vez de ajudar, embarcou nas mentiras da mídia e se portou de forma desrespeitosa, com espírito colonialista.
Questionaram aquilo que nos é mais sagrado: a nossa soberania!

Um deles por ocasião do encontro do G7 ousou sugerir aplicar sanções ao Brasil, sem sequer nos ouvir. Agradeço àqueles que não aceitaram levar adiante essa absurda proposta.
Em especial, ao Presidente Donald Trump, que bem sintetizou o espirito que deve reinar entre os países da ONU: respeito à liberdade e à soberania de cada um de nós.

Hoje, 14% do território brasileiro está demarcado como terra indígena, mas é preciso entender que nossos nativos são seres humanos, exatamente como qualquer um de nós. Eles querem e merecem usufruir dos mesmos direitos de que todos nós.
Quero deixar claro: o Brasil não vai aumentar para 20% sua área já demarcada como terra indígena, como alguns chefes de Estados gostariam que acontecesse.
Existem, no Brasil, 225 povos indígenas, além de referências de 70 tribos vivendo em locais isolados. Cada povo ou tribo com seu cacique, sua cultura, suas tradições, seus costumes e principalmente sua forma de ver o mundo.

A visão de um líder indígena não representa a de todos os índios brasileiros. Muitas vezes alguns desses líderes, como o Cacique Raoni, são usados como peça de manobra por governos estrangeiros na sua guerra informacional para avançar seus interesses na Amazônia.
Infelizmente, algumas pessoas, de dentro e de fora do Brasil, apoiadas em ONGs, teimam em tratar e manter nossos índios como verdadeiros homens das cavernas.

O Brasil agora tem um presidente que se preocupa com aqueles que lá estavam antes da chegada dos portugueses. O índio não quer ser latifundiário pobre em cima de terras ricas. Especialmente das terras mais ricas do mundo. É o caso das reservas Ianomâmi e Raposa Serra do Sol. Nessas reservas, existe grande abundância de ouro, diamante, urânio, nióbio e terras raras, entre outros.
E esses territórios são enormes. A reserva Ianomâmi, sozinha, conta com aproximadamente 95 mil km2, o equivalente ao tamanho de Portugal ou da Hungria, embora apenas 15 mil índios vivam nessa área.

Isso demonstra que os que nos atacam não estão preocupados com o ser humano índio, mas sim com as riquezas minerais e a biodiversidade existentes nessas áreas.
Para mostrar aos senhores que não existe uma autoridade única entre os índios eu quero ler uma carta das comunidades indígenas endereçadas aos senhores:

'O Grupo de Agricultores Indígenas do Brasil, formado por diversas etnias, e com representantes por todas as unidades da federação, que habitam uma área mais de 30 milhões de hectares do território brasileiro, vem respeitosamente perante a sociedade brasileira endossar total e irrestrito apoio à indígena Ysani Kalapalo, aqui presente, do Parque Indígena do Xingu, do Mato Grosso, para que a mesma possa da Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York, nos Estados Unidos, externar toda a realidade vivida pelos povos indígenas do Brasil, bem como trazer à tona o atual quadro de mentiras propagado pela mídia nacional e internacional, que insiste em fazer dos povos indígenas do Brasil uma reserva de mercado sem fim, atendendo aos interesses estrangeiros de países que ainda enxergam o Brasil como uma colônia sem regras e sem soberania.
O Brasil possui 14% de seu território nacional regularizado em terras indígenas, e muitas comunidades estão sedentas para que o desenvolvimento desta parte do Brasil finalmente ocorra sem amarras ideológicas ou burocráticas. Isso facilitará o alcance de uma maior qualidade de vida nas áreas de empreendedorismo, saúde e educação.
Uma nova política indigenista no Brasil é necessária. O tempo urge.
Medidas arrojadas podem e devem ser incentivadas na busca pela autonomia econômica dos indígenas. Certamente, que se um conjunto de decisões vier neste sentido, poderemos vislumbrar um novo modelo para a questão indígena brasileira.
Um novo tempo para as comunidades indígenas é fundamental, a situação de extrema pobreza em que se encontram, sobrevivendo tão somente do Bolsa Família e de cestas básicas nunca representou dignidade e desenvolvimento.
O ambientalismo radical e o indigenismo ultrapassado e fora de sintonia com o que querem os povos indígenas representam o atraso, a marginalização e a completa ausência de cidadania.
A realidade ora posta impõe que o mundo na arena da Assembleia das Nações Unidas possa reconhecer nossos desejos e aspirações na voz da indígena Ysani Kalapalo que transmitirá o real quadro do meio ambiente e das comunidades indígenas brasileiras.
Portanto, Ysani Kalapalo goza da confiança e do prestígio das lideranças indígenas interessadas em desenvolvimento, empoderamento e protagonismo, estando apta para representar as etnias relacionadas’.
Acabou o monopólio do senhor Raoni'

A Organização das Nações Unidas teve papel fundamental na superação do colonialismo e não pode aceitar que essa mentalidade regresse a estas salas e corredores, sob qualquer pretexto.
Não podemos esquecer que o mundo necessita ser alimentado. A França e a Alemanha, por exemplo, usam mais de 50% de seus territórios para a agricultura, já o Brasil usa apenas 8% de terras para a produção de alimentos.
61% do nosso território é preservado!

Nossa política é de tolerância zero para com a criminalidade, aí incluídos os crimes ambientais.
Quero reafirmar minha posição de que qualquer iniciativa de ajuda ou apoio à preservação da Floresta Amazônica, ou de outros biomas, deve ser tratada em pleno respeito à soberania brasileira.
Também rechaçamos as tentativas de instrumentalizar a questão ambiental ou a política indigenista, em prol de interesses políticos e econômicos externos, em especial os disfarçados de boas intenções.
Estamos prontos para, em parcerias, e agregando valor, aproveitar de forma sustentável todo nosso potencial.

O Brasil reafirma seu compromisso intransigente com os mais altos padrões de direitos humanos, com a defesa da democracia e da liberdade, de expressão, religiosa e de imprensa. É um compromisso que caminha junto com o combate à corrupção e à criminalidade, demandas urgentes da sociedade brasileira.

Seguiremos contribuindo, dentro e fora das Nações Unidas, para a construção de um mundo onde não haja impunidade, esconderijo ou abrigo para criminosos e corruptos.
Em meu governo, o terrorista italiano Cesare Battisti fugiu do Brasil, foi preso na Bolívia e extraditado para a Itália. Outros três terroristas paraguaios e um chileno, que viviam no Brasil como refugiados políticos, também foram devolvidos a seus países.
Terroristas sob o disfarce de perseguidos políticos não mais encontrarão refúgio no Brasil.

Há pouco, presidentes socialistas que me antecederam desviaram centenas de bilhões de dólares comprando parte da mídia e do parlamento, tudo por um projeto de poder absoluto.
Foram julgados e punidos graças ao patriotismo, perseverança e coragem de um juiz que é símbolo no meu país, o Dr. Sérgio Moro, nosso atual Ministro da Justiça e Segurança Pública.

Esses presidentes também transferiram boa parte desses recursos para outros países, com a finalidade de promover e implementar projetos semelhantes em toda a região. Essa fonte de recursos secou.
Esses mesmos governantes vinham aqui todos os anos e faziam descompromissados discursos com temas que nunca atenderam aos reais interesses do Brasil nem contribuíram para a estabilidade mundial. Mesmo assim, eram aplaudidos.

Em meu país, tínhamos que fazer algo a respeito dos quase 70 mil homicídios e dos incontáveis crimes violentos que, anualmente, massacravam a população brasileira. A vida é o mais básico dos direitos humanos. Nossos policiais militares eram o alvo preferencial do crime. Só em 2017, cerca de 400 policiais militares foram cruelmente assassinados. Isso está mudando.
Medidas foram tomadas e conseguimos reduzir em mais de 20% o número de homicídios nos seis primeiros meses de meu governo.
As apreensões de cocaína e outras drogas atingiram níveis recorde.

Hoje o Brasil está mais seguro e ainda mais hospitaleiro. Acabamos de estender a isenção de vistos para países como Estados Unidos, Japão, Austrália e Canadá, e estamos estudando adotar medidas similares para China e Índia, dentre outros.
Com mais segurança e com essas facilidades, queremos que todos possam conhecer o Brasil, e em especial, a nossa Amazônia, com toda sua vastidão e beleza natural.

Ela não está sendo devastada e nem consumida pelo fogo, como diz mentirosamente a mídia. Cada um de vocês pode comprovar o que estou falando agora.
Não deixem de conhecer o Brasil, ele é muito diferente daquele estampado em muitos jornais e televisões!

A perseguição religiosa é um flagelo que devemos combater de forma incansável.
Nos últimos anos, testemunhamos, em diferentes regiões, ataques covardes que vitimaram fiéis congregados em igrejas, sinagogas e mesquitas.
O Brasil condena, energicamente, todos esses atos e está pronto a colaborar, com outros países, para a proteção daqueles que se veem oprimidos por causa de sua fé.
Preocupam o povo brasileiro, em particular, a crescente perseguição, a discriminação e a violência contra missionários e minorias religiosas, em diferentes regiões do mundo.
Por isso, apoiamos a criação do 'Dia Internacional em Memória das Vítimas de Atos de Violência baseados em Religião ou Crença'.

Nessa data, recordaremos anualmente aqueles que sofrem as consequências nefastas da perseguição religiosa.
É inadmissível que, em pleno Século XXI, com tantos instrumentos, tratados e organismos com a finalidade de resguardar direitos de todo tipo e de toda sorte, ainda haja milhões de cristãos e pessoas de outras religiões que perdem sua vida ou sua liberdade em razão de sua fé.

A devoção do Brasil à causa da paz se comprova pelo sólido histórico de contribuições para as missões da ONU.
Há 70 anos, o Brasil tem dado contribuição efetiva para as operações de manutenção da paz das Nações Unidas.
Apoiamos todos os esforços para que essas missões se tornem mais efetivas e tragam benefícios reais e concretos para os países que as recebem.
Nas circunstâncias mais variadas – no Haiti, no Líbano, na República Democrática do Congo –, os contingentes brasileiros são reconhecidos pela qualidade de seu trabalho e pelo respeito à população, aos direitos humanos e aos princípios que norteiam as operações de manutenção de paz.
Reafirmo nossa disposição de manter contribuição concreta às missões da ONU, inclusive no que diz respeito ao treinamento e à capacitação de tropas, área em que temos reconhecida experiência.
Ao longo deste ano, estabelecemos uma ampla agenda internacional com intuito de resgatar o papel do Brasil no cenário mundial e retomar as relações com importantes parceiros.

Em janeiro, estivemos em Davos, onde apresentamos nosso ambicioso programa de reformas para investidores de todo o mundo.
Em março, visitamos Washington onde lançamos uma parceria abrangente e ousada com o governo dos Estados Unidos em todas as áreas, com destaque para a coordenação política e para a cooperação econômica e militar.
Ainda em março, estivemos no Chile, onde foi lançado o PROSUL, importante iniciativa para garantir que a América do Sul se consolide como um espaço de democracia e de liberdade.
Na sequência, visitamos Israel, onde identificamos inúmeras oportunidades de cooperação em especial na área de tecnologia e segurança. Agradeço a Israel o apoio no combate aos recentes desastres ocorridos em meu país.

Visitamos também um de nossos grandes parceiros no Cone Sul, a Argentina. Com o Presidente Mauricio Macri e nossos sócios do Uruguai e do Paraguai, afastamos do Mercosul a ideologia e conquistamos importantes vitórias comerciais, ao concluir negociações que já se arrastavam por décadas.
Ainda este ano, visitaremos importantes parceiros asiáticos, tanto no Extremo Oriente quanto no Oriente Médio. Essas visitas reforçarão a amizade e o aprofundamento das relações com Japão, China, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Catar. Pretendemos seguir o mesmo caminho com todo o mundo árabe e a Ásia.
Também estamos ansiosos para visitar nossos parceiros, e amigos, na África, na Oceania e na Europa.
Como os senhores podem ver, o Brasil é um país aberto ao mundo, em busca de parcerias com todos os que tenham interesse de trabalhar pela prosperidade, pela paz e pela liberdade.

Senhoras e Senhores,
O Brasil que represento é um país que está se reerguendo, revigorando parcerias e reconquistando sua confiança política e economicamente.
Estamos preparados para assumir as responsabilidades que nos cabem no sistema internacional.
Durante as últimas décadas, nos deixamos seduzir, sem perceber, por sistemas ideológicos de pensamento que não buscavam a verdade, mas o poder absoluto.
A ideologia se instalou no terreno da cultura, da educação e da mídia, dominando meios de comunicação, universidades e escolas.
A ideologia invadiu nossos lares para investir contra a célula mater de qualquer sociedade saudável, a família.
Tentam ainda destruir a inocência de nossas crianças, pervertendo até mesmo sua identidade mais básica e elementar, a biológica.
O politicamente correto passou a dominar o debate público para expulsar a racionalidade e substituí-la pela manipulação, pela repetição de clichês e pelas palavras de ordem.
A ideologia invadiu a própria alma humana para dela expulsar Deus e a dignidade com que Ele nos revestiu.
E, com esses métodos, essa ideologia sempre deixou um rastro de morte, ignorância e miséria por onde passou.
Sou prova viva disso. Fui covardemente esfaqueado por um militante de esquerda e só sobrevivi por um milagre de Deus. Mais uma vez agradeço a Deus pela minha vida.

A ONU pode ajudar a derrotar o ambiente materialista e ideológico que compromete alguns princípios básicos da dignidade humana. Essa organização foi criada para promover a paz entre nações soberanas e o progresso social com liberdade, conforme o preâmbulo de sua Carta.
Nas questões do clima, da democracia, dos direitos humanos, da igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres, e em tantas outras, tudo o que precisamos é isto: contemplar a verdade, seguindo João 8,32:
- “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”.

Todos os nossos instrumentos, nacionais e internacionais, devem estar direcionados, em última instância, para esse objetivo.
Não estamos aqui para apagar nacionalidades e soberanias em nome de um “interesse global” abstrato.
Esta não é a Organização do Interesse Global!
É a Organização das Nações Unidas. Assim deve permanecer!

Com humildade e confiante no poder libertador da verdade, estejam certos de que poderão contar com este novo Brasil que aqui apresento aos senhores e senhoras.
Agradeço a todos pela graça e glória de Deus!
Meu muito obrigado."


sábado, 24 de agosto de 2019

ESTADO ASSASSINO: É PRECISO COMPOSTURA PARA MATAR


ESTADO ASSASSINO: É PRECISO COMPOSTURA PARA MATAR


By Walfrido Warde
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Obs:. Este artigo foi publicado no Portal do IG, 22/08/2019, e RETIRADO doAR por determinação dos controladores do portal.
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O Brasil assistiu nesta semana o trágico desfecho de um sequestro. O sequestrador foi morto e os reféns libertos. Ainda assim foi trágico, repito. O assassinato de um ser humano pelo Estado, mesmo que em defesa de vidas humanas inocentes, é a representação da derrota. É o fracasso de muitas políticas de Estado, em especial as de educação e de distribuição de renda. É o reconhecimento de que apenas uma solução grosseira é capaz de resolver uma crise aguda; uma crise causada, sobretudo, pela incompetência dos que não souberam prevenir a crise. Seja qual for a causa do crime, loucura, necessidade ou ganância, haverá sempre uma política pública capaz de aplacá-la, sem a necessidade de matar

O discurso sedutor, que no momento se escora sobre uma turba brutalizada, farta da violência que a vitimiza mais e mais, especialmente nas comunidades mais pobres, é aquele que promete matar. É a apologia do assassinato estatal como panaceia, como remédio para todos os males; um lança-chamas apontado inadvertidamente para os pobres, jovens e negros deste país. Sim, pobres, jovens e negros, como as estatísticas (as tão detraídas estatísticas) não permitem mentir.

Parte significativa da população, gente que devemos respeitar, gente trabalhadora e honesta, mas equivocada, acredita que esse frenesi de violência estatal é a única solução para a criminalidade. E, para prová-lo, os paladinos da violência estatal ostentam, orgulhosos, mais uma vez, as estatísticas (as tão detraídas estatísticas), uma diminuída mancha do crime.

Mas as granadas e as balas de metralhadora, ofertadas aleatoriamente dos helicópteros que fazem rasantes sobre as favelas, são e serão insuficientes para matar o exército de criminosos que a pobreza e sua patrona, a desídia dos governantes, produzem todos os dias no Brasil....

É ignóbil e indiscutivelmente errada a conclusão que aponta para uma diminuição estrutural da violência por meio da violência, que aposta no homicídio como política pública. Essa conclusão, uma vez aplicada, produzirá superbandidos, cada vez mais destemidos e cruéis, dispostos a morrer, porque a vida, banalizada pelo próprio Estado, perdeu todo o sentido.

A aposta no homicídio como política pública terá, de outro modo, um impacto devastador sobre os agentes de Estado, aos quais é dado matar, em especial ultimamente, por frouxas razões. Agentes aos quais são criadas justificativas subjetivas para massacrar a vida. Esses perderão por completo a empatia, a capacidade de compreender o próximo, a mediada que a humanidade deles se esvai, como o sangue dos seus alvos.

Nos momentos em que matar significa matar ou morrer. Nos momentos em que o Estado precisa matar, que a Lei autoriza que mate, e eles devem ser muito restritos, o assassinato exige sobriedade, compostura, respeito à vida, cujo valor transcendente nos iguala e irmana. Não há como respeitar a vida senão pelo respeito a todas as vidas, sem exceção.

O governador Witzel se equivocou, errou feio, não há interpretação que justifique o seu chilique, os seus espasmos de contentamento pela morte de um de seus administrados. Até para matar é preciso compostura. E a falta de compostura sempre faz prova da incapacidade de assumir grandes responsabilidades.

É preciso que compreendamos que a compostura e a sanidade são requisitos essenciais ao cumprimento das funções públicas. É preciso que aprendamos a escolher tendo a compostura e a sanidade como critérios primeiros. A aposta no desvario é combustível do desastre.

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Walfrido Warde é autor do livro mais importante escrito no Brasil sobre combate à corrupção. 
"O Espetáculo da Corrupção" , com o subtítulo : 
"Como um sistema corrupto e o modo de combatê-lo estão destruindo o país"

terça-feira, 6 de agosto de 2019

QUEM VAI INVADIR O BRASIL PARA SALVAR A AMAZÔNIA?



QUEM VAI INVADIR O BRASIL PARA SALVAR A AMAZÔNIA?

Transamazônica (BR-230) próximo de   Medicilandia (PA), 13/03/2019 MAURO PIMENTEL/AFP/GETTY IMAGES

É só uma questão de tempo até que grandes potências tentem impedir a mudança climática por qualquer meio necessário.

STEPHEN M. WALT | 5 DE AGOSTO DE 2019.

5 de agosto de 2025: Em um discurso na televisão para a nação, o presidente dos EUA, Gavin Newsom, anunciou que havia dado ao Brasil um ultimato de uma semana para cessar as atividades destrutivas de desmatamento na floresta amazônica. Se o Brasil não cumprisse, avisou o presidente, ele ordenaria um bloqueio naval de portos e ataques aéreos brasileiros contra infraestruturas brasileiras críticas. A decisão do presidente veio no rescaldo de um novo relatório das Nações Unidas catalogando os efeitos globais catastróficos da contínua destruição da floresta tropical, que alertou para um "ponto crítico" que, se atingido, desencadearia uma rápida aceleração do aquecimento global. Embora a China tenha declarado que iria vetar qualquer resolução do Conselho de Segurança da ONU autorizando o uso da força contra o Brasil, o presidente disse que uma grande “coalizão de estados preocupados” estava preparada para apoiar a ação dos EUA. Ao mesmo tempo, Newsom disse que os Estados Unidos e outros países estão dispostos a negociar um pacote de compensação para mitigar os custos para o Brasil para proteger a floresta tropical, mas somente se ela cessar seus esforços atuais para acelerar o desenvolvimento.

O cenário acima é obviamente exagerado - pelo menos eu acho que é - mas até onde você iria para evitar danos ambientais irreversíveis? Em particular, os estados têm o direito - ou mesmo a obrigação - de intervir em um país estrangeiro a fim de evitar que cause danos irreversíveis e possivelmente catastróficos ao meio ambiente?

Levanto essa questão à luz das notícias de que o presidente brasileiro Jair Bolsonaro está acelerando o desenvolvimento da floresta amazônica (60% das quais estão nas mãos dos brasileiros), pondo assim em perigo um recurso global crítico.

Como aqueles de vocês com mais respeito pela ciência do que Bolsonaro sabem, a floresta tropical é tanto um sumidouro de carbono importante quanto um regulador crítico de temperatura, bem como uma fonte importante de água doce. O desmatamento já prejudicou sua capacidade de desempenhar esses papéis cruciais, e cientistas brasileiros estimam que condições cada vez mais quentes e secas poderiam converter boa parte da floresta para a savana seca, com efeitos potencialmente catastróficos.

Na semana passada, a matéria de capa da revista Economist, pró-empresa e orientada para livre mercado, foi “Deathwatch for the Amazon” (“Velando pela Amazônia”)  que apresenta a questão muito bem. Para reafirmar minha pergunta inicial: O que a comunidade internacional tem o direito (ou obrigação) de fazer   para evitar que um presidente brasileiro equivocado (ou líderes políticos em outros países) adote ações que possam prejudicar a todos nós?

Isso é onde fica complicado. A soberania do Estado é um elemento crítico do atual sistema internacional; com certas exceções, os governos nacionais são livres para fazer o que quiserem dentro de suas próprias fronteiras. Mesmo assim, a cláusula pétrea da soberania nunca foi absoluta, e várias forças foram se desdobrando por muito tempo. Os Estados podem ser sancionados por violar o direito internacional (por exemplo, desafiando resoluções do Conselho de Segurança da ONU), e o direito internacional autoriza os países a entrar em guerra por autodefesa ou quando o Conselho de Segurança autorizar ações militares. É até legal atacar o território de outro país preventivamente, desde que haja uma base bem fundamentada para acreditar que ele estava prestes a atacá-lo primeiro.

Mais controversamente, a doutrina da “responsabilidade de proteger” procurou legitimar a intervenção humanitária em potências estrangeiras quando o governo local era incapaz ou não estava disposto a proteger seu próprio povo. E, na prática, os Estados aceitam rotineiramente as infrações à sua própria soberania, a fim de facilitar formas benéficas de cooperação internacional.

Quando a pressão chega, no entanto, a maioria dos estados se ressente e resiste aos esforços externos para levá-los a mudar o que estão fazendo dentro de suas próprias fronteiras. E mesmo que a destruição da floresta amazônica represente uma clara e óbvia ameaça para muitos outros países, dizer ao Brasil para parar e ameaçar tomar medidas para deter, punir ou prevenir seria um jogo inteiramente novo. E eu não quero destacar o Brasil: seria um passo igualmente radical ameaçar os Estados Unidos ou a China se eles se recusassem a emitir tantos gases do efeito estufa.

Não é como se os líderes mundiais não tivessem reconhecido a gravidade do problema. As Nações Unidas consideraram a degradação ambiental como uma “ameaça à paz e segurança internacional”, e o ex-representante de política externa da União Européia, Javier Solana, argumentou em 2008 que a mudança climática “deve estar no centro das políticas externas e de segurança da UE”. já identificaram várias maneiras pelas quais o Conselho de Segurança poderia agir para evitá-lo.


Como os pesquisadores Bruce Gilley e David Kinsella escreveram há alguns anos, “é pelo menos legalmente viável que o Conselho de Segurança invoque sua autoridade sob o Artigo 42, e use força militar contra os Estados que considera ameaças à paz e segurança internacionais em virtude de sua falta de vontade ou incapacidade de refrear as atividades destrutivas que emanam de seus territórios ”.

A questão, portanto, é até que ponto a comunidade internacional estaria disposta a ir a fim de prevenir, suspender ou reverter ações que possam causar danos imensos e irreparáveis ​​ao meio ambiente de que todos os seres humanos dependem? Pode parecer improvável imaginar estados ameaçando uma ação militar para evitar isso hoje, mas torna-se mais provável que as estimativas mais pessimistas de nosso futuro climático se mostrem corretas.

Mas aqui está um paradoxo cruel: os países que são os maiores responsáveis ​​pela mudança climática também são os menos suscetíveis à coerção, enquanto a maioria dos estados que podem ser pressionados a agir não são fontes significativas do problema subjacente. Os cinco principais emissores de gases do efeito estufa são a China, os Estados Unidos, a Índia, a Rússia e o Japão - quatro deles são estados de armas nucleares e o Japão é uma potência militar formidável por si só. Não é provável que ameaçar qualquer um deles com sanções funcione, e ameaçar uma séria ação militar contra eles é completamente irrealista. Além disso, é improvável que o Conselho de Segurança autorize o uso da força contra estados muito mais fracos, porque os membros permanentes não gostariam de estabelecer esse precedente e quase certamente vetariam a proposta.

É isso que torna o caso brasileiro mais interessante. O Brasil está de posse de um recurso global crítico - por razões puramente históricas - e sua destruição prejudicaria muitos estados, se não o planeta inteiro. Ao contrário de Belize ou Burundi, o que o Brasil faz pode ter um grande impacto. Mas o Brasil não é uma verdadeira grande potência, e ameaçá-lo com sanções econômicas ou mesmo com o uso da força se ele se recusar a proteger a floresta tropical pode ser viável. Para deixar claro: não estou recomendando esse curso de ação agora ou no futuro. Eu estou apenas apontando que o Brasil pode ser um pouco mais vulnerável à pressão do que alguns outros estados.

Pode-se também imaginar outros remédios para esse problema. Os Estados certamente poderiam ameaçar ou impor sanções comerciais unilaterais contra Estados ambientalmente irresponsáveis, e os cidadãos privados poderiam sempre tentar organizar boicotes voluntários por razões semelhantes. Alguns estados deram passos nesse sentido, e é fácil imaginar tais medidas se tornando mais difundidas à medida que os problemas ambientais se multiplicam. Alternativamente, os estados que governam o território ambientalmente sensível poderiam ser pagos para preservá-lo, no interesse de toda a humanidade. Com efeito, a comunidade internacional estaria subsidiando a proteção ambiental por parte daqueles que possuem os meios de fazer algo a respeito.
Essa abordagem tem o mérito de não desencadear o tipo de reação nacionalista que uma campanha coercitiva pode provocar, mas também pode incentivar alguns países a adotar políticas ambientalmente irresponsáveis, na esperança de obter benefícios econômicos de uma comunidade internacional preocupada.

Isso tudo é muito especulativo, e eu comecei a pensar em algumas das implicações desses dilemas. No entanto, acho que sei o seguinte: em um mundo de estados soberanos, cada um fará o que deve para proteger seus interesses. Se as ações de alguns estados estão pondo em perigo o futuro de todo o resto, a possibilidade de confrontos sérios e possivelmente de sérios conflitos vai aumentar. Isso não torna o uso da força inevitável, mas esforços mais sustentados, enérgicos e imaginativos serão necessários para evitá-lo.
Stephen M. Walt é o professor de relações internacionais Robert e Renée Belfer na Universidade de Harvard.

(Tradução de Jorge, o da Viriato e do Google Tradutor)
Rio, 6 de agosto de 2019

sexta-feira, 22 de março de 2019

A TOMADA de PODER pelos ESTAGIÁRIOS e o NOVO REGIME


Neste artigo, o autor , entre o sério e o jocoso, mostra como é o serviço da Justiça em nosso país e, ao mesmo tempo, como seria um hipotético Novo Regime saneador...



A TOMADA de PODER pelos ESTAGIÁRIOS e o NOVO REGIME


Respeito muito os estagiários. Esta coluna é uma homenagem a eles e, especialmente, àqueles que trabalha(ra)m em meu gabinete nestes anos todos. Valorosa classe. Inicio com uma citação:

“Embora a qualidade média das decisões judiciais possa não ter diminuído em conseqüência da atribuição de redigi-las a estagiários, a variação de qualidade diminuiu. Os estagiários de direito – que em sua maioria, são indivíduos recém-formados em direito, com referências acadêmicas extraordinárias, mas sem experiência em direito ou em qualquer outra profissão – são mais homogêneos que os juízes. A tendência à uniformidade da produção, também característica das petições redigidas pelos grandes escritórios de advocacia, encontra equivalência na evolução em direção à fabricação em massa de produtos...”.

Não se empolguem aqueles críticos que sempre acham que no Brasil tudo é pior... A citação anterior é uma preocupação externada por um dos corifeus da análise econômica do direito (AED), Richard Posner – portanto, distante das minhas predileções teóricas - em relação à “estagiarização” que está ocorrendo nos Estados Unidos.

1. Todo o poder aos estagiários.

Os estagiários ainda não assumiram o poder – falo agora de terrae brasilis - porque não estão (ainda) bem organizados. Deveriam aderir à CUT. Em alguns anos, chegariam lá. Dia desses veremos os muros pichados com a frase “TODO O PODER AOS ESTAGIÁRIOS”. Afinal, eles dão sentenças, fazem acórdãos, pareceres, elaboram contratos de licitação, revisam processos... Vão ao banco. Sacam dinheiro. Possuem as senhas. Eles assinam eletronicamente documentos públicos. Eles decidem. Têm poder. Eu os amo e os temo.

Sim, eu respeito profundamente os estagiários. Eles estão difusos na República. Por vezes, invisíveis. Jamais saberemos quantos são. E onde estão. Algum deles pode estar com você no elevador neste momento. Ou em uma audiência (é bem provável até). Ou no Palácio do(s) Governo(s). Federal, estadual e municipal. Sei de vários que lá estão. E participam de reunião de gabinetes de Ministérios. Que bom. Com isso vão aprendendo. Afinal, é para isso que servem os estagiários.

Eles fazem de tudo. Neste momento, um estagiário, ou vários deles, podem estar controlando o seu voo. A Infraero tem muitos estagiários. Torço para que eles sejam tão bons quanto os que estagiam no meu gabinete. Estagiários de todo mundo: uni-vos. Nada tendes a perder senão vossos manuais recheados de enunciados prêt à porter, prêt à parler, prêt à penser que os professores vos mandam comprar. Estagiários de toda a nação: indignai-vos face à exploração a que estão submetidos.

1. A tomada do poder.

Parênteses: como seria uma revolta dos estagiários? Imaginemos uma aliança tipo “operário-camponesa”, quer dizer, uma aliança entre estagiários e os bacharéis que não passaram no Exame de Ordem. Cercariam os Fóruns e Tribunais. Juízes, Promotores, advogados e serventuários da justiça (sim, estes, dos quais muitos maltratam os pobres estagiários nos balcões de todo o Brasil) ficariam sitiados durante semanas. O armamento das forças aliadas (estagiários e bacharéis sem carteira) seria simples, mas letal: enormes catapultas, com as quais atirariam enormes manuais (aqueles que querem simplificar o direito e que, por sua causa e baixa densidade científica, os bacharéis não conseguiram passar no exame de ordem e nem nos concursos)... Conheço alguns desses compêndios que provocariam enormes estragos nos tetos dos Tribunais. Penso que nem o teto do STJ resistiria. Que, assim como os demais fóruns, repartições e tribunais, teriam um problema a mais: não somente o ataque vindo de fora, das catapultas das forças aliadas, como também de dentro. Explico: provavelmente o ataque seria lançado durante o expediente. Alguns representantes do MUNESBASC (Movimento Unido dos Estagiários e Bacharéis sem Carteira) estão fazendo alianças com os bacharéis – mesmo os com carteira - que não conseguem decifrar as questões armadilhescas dos concursos públicos (a sigla do movimento, pelo seu tamanho, é impossível de publicar). Já se fala abertamente em um putsch.

Eles formam verdadeiramente o Terceiro Estado. Lembrem-se: antes de 1789, já se ouviam rumores... Diziam coisas, mas ninguém acreditava: lá vinham eles em direção à Paris...! Hoje, os estagiários são aquele conjunto de pessoas que formavam o terceiro Estado (camponeses, comerciantes, advogados, enfim, todos os que não eram nobres ou clérigos...). E as fileiras vão engrossando.

Portanto, meu pedido inicial: estagiários de todo os fóruns, repartições, palácios e tribunais em geral: quando chegardes ao poder, poupai-me! Sou da “base aliada dos estagiários”. A diferença é que não fico exigindo, como fazem os deputados da base aliada do governo, a liberação de emendas parlamentares. Eu apoio a futura estagiariocracia sem chantagear! Outro detalhe que me favorece: eu não peço para a “base aliada” colocar minha mãe no TCU (lembram-se de um certo governador fazendo campanha para levar mamãe ao Tribunal de Contas da União? Ele conseguiu!). Quem me contou isso foi um estagiário que viu tudo...

Eles sabem de tudo. Outra vantagem minha: como sou da base aliada dos estagiários, não mando a conta da arrumação dos meus dentes para o Senado (portanto, é a patuléia quem paga), como fez, no ano passado, o agora presidente da comissão de ética, senador Valadares. E nem uso o que resta das minhas cotas de passagens aéreas para levar familiares (ou namoradas) para a Disney ou para Paris. Nem quero o Ministério da Pesca. Eu também não sei pescar, assim como o ministro Crivella. Só sei escrever. Um pouco.

2. Depois da revolução. Como seria o nouveau régime? O adeus ao ancièn régime.

Eu apoio a futura estagiariocracia sem exigir cargos ou favores. Já ofereço, desde já, a minha biblioteca para o nouveau régime. Ela pode ser expropriada. Vamos melhorar o ensino jurídico brasileiro. Tenho uma lista enorme de livros a indicar. Bons autores. Nenhum deles trará as lições de autores como Dworkin, Habermas, Gadamer, Rui Barbosa, Pontes de Miranda, Heleno Fragoso, Alexy, Kelsen, etc, de “orelha” (aqui, cada leitor pode fazer a sua lista – não quero polemizar nessas simples referências). Nada de pequenos resumos. Fora com as vulgatas. Vamos estudar de verdade. No novo regime, o direito será encarado como um fenômeno complexo. Portanto, não haverá mais espaço para “literatura piriguete” (quer algo mais fácil que “piriguete”?) Também na pós-graduação (mestrados e doutorados) não mais serão feitas dissertações ou teses sobre temas monográficos como “agravo de instrumento”, “o papel do oficial de justiça”, “reflexões sobre os embargos infringentes”; “(re)pensando o artigo 25 do Código do Consumidor – uma visão critica”; “um olhar sistêmico sobre a progressão de regime” ou “execução de pré-executividade: reflexões à margem”... (permitam-se as licenças poéticas).

Sim, tudo mudará. Os estudantes não mais serão enganados pelo professor que só sabe dar aula usando Power Point e fica lendo o que está nesse “pauerpoint” (observação: se o professor insistir, passará a remeter o material via email para os alunos, que poderão ficar em casa lendo aquilo que, até então, ele lia para eles no pauerpoint...). PS: antes que alguém se atravesse (ou se irrite), registro: sim, eu valorizo bastante as novas tecnologias... Só acho que não podem ser um fim em si mesmo. O instrumento não substitui o saber.

No nouveau régime, será proibido ao professor ficar lendo o artigo do código para os alunos e, em seguida, “explicar” – fazendo caras e bocas - o que “dizem as palavras da lei...”. Será proibido invocar coisas metafísicas como “a vontade da norma” (como sabemos, “norma” só tem vontade se for uma senhora que convidamos para jantar). Sugeri isso para a pauta da Estagiariocracia porque essa discussão me é muito cara. De há muito.

Também não haverá mais a invocação do “espírito do legislador” e não haverá mais perguntas “inteligentes” como “o que o legislador quis dizer aqui”? (neste caso, sempre haverá um aluno – espião do regime – que entregará um celular pré-pago ao professor sugerindo-lhe que ele mesmo, o mestre, ligue para “o legislador” e pergunte...).

Com o tempo, os alunos, a partir desse novo programa pedagógico, já poderão entender as anedotas e os sarcasmos que eu conto em minhas palestras... Até as finas ironias (não só as minhas, é claro) serão compreendidas. Já não agüento mais contar a estória dos rabinos que estudavam o Talmude, o Livro Sagrado... Mas, é claro, não contarei aqui. Não mais precisarei explicar que interpretar não depende de placar ou de maioria... E que quando o Rabino Eliezer disse... Bem, deixemos assim. Na próxima conferência, que será em Natal (Congresso em Homenagem ao Min. Gilmar Mendes), prometo que contarei (de novo). Ainda: quando falo do sujeito solipsista, não será mais preciso estroinar no final, desfazendo o silêncio com brincadeiras do tipo “o Selbstsüchtiger (sim, é esse o nome do sujeito egoísta da modernidade, esse do esquema sujeito-objeto) não é o volante do Bayern de Munique... O novo regime será muito bom. Já estou antevendo isso. Alvíssaras.

Mas, tem mais: no nouveau régime — pelo menos até que ocorra a restauração (sempre ocorre, pois não) do ancièn régime e nossas cabeças sejam cortadas — mudaremos os atuais currículos dos cursos jurídicos. E os concursos públicos não mais perguntarão sobre a vida e obra de gêmeos xifópagos e nem sobre a transformação de homens em lagartos (nunca vou esquecer isso). As questões não mais versarão sobre enfiteuse e nem serão armadilhas (pegadinhas malandras que só divertem o nécio que a elaborou). Não mais será necessário decorar a Constituição e os Códigos para fazer concurso; as perguntas, no novo regime, buscarão detectar efetivamente o que os candidatos sabem; também o Exame de Ordem não trará mais perguntas que somente o argüidor saiba ou baseadas no único livro que o argüidor leu ou conhece.

Nessa nova era, as provas de concursos não serão mais feitas para divertir os arguidores. Não. Nunca mais. E haverá fortes punições. Por exemplo, quem fizer perguntas do estilo “pegadinhas” ou sobre coisas ridículas (p.e.x., Caio e Tício que embarcam em uma tábua e depois se matam...), terá que resolver as questões do mesmo concurso feitas pelos seus colegas de banca. E essa prova será oral... na presença de todos os concurseiros (como na arena romana). E cabeças rolarão!

No nouveau régime, extinguiremos (me coloco no meio porque me considero, como já disse, da “base aliada dos estagiários”) os embargos declaratórios e os juízes não mais farão sentenças obscuras, contraditórias ou omissas. No novo regime, o art. 93, IX será cumprido na íntegra. E não será mais necessário fazer agravo do agravo; e nem embargos do agravo e embargos do agravo do agravo. Na nova ordem que será instaurada, o Supremo Tribunal Federal declarará a inconstitucionalidade dos embargos declaratórios (ou os declarará não recepcionados, antes que alguém me corrija e diga que, em sendo o art. 535 do CPC anterior a Constituição, não cabe ADI – embora caiba ADPF, pois não?).

No novo regime, não mais se decidirá conforme o que cada-um-pensa-sobre-o- mundo-e-o-direito, mas, sim, a partir do que diz a doutrina e a jurisprudência, com coerência e integridade. O direito terá um DNA. As denuncias do Ministério Público somente serão deduzidas quando efetivamente existirem indícios. Não bastará juntar reportagens de revistas, por exemplo. E serão recebidas de forma amplamente fundamentadas.

Nesse novo tempo, não será mais permitido construir princípios estapafúrdios. Até que saibamos, de fato, o que é um Princípio, sua “fabricação” estará suspensa. Proibida! Vamos separar o joio do trigo. Como Medida Provisória n. 1, já de pronto ficam revogados “princípios” como “da ausência ocasional do plenário”, “da rotatividade”, “do fato consumado”, “da confiança no juiz da causa”, “da delação impositiva”, “alteralidade”, da “benignidade”, “do deduzido e do dedutível”, “da afetividade” e “da felicidade” (embora todos queiramos ser felizes!).... Estão fora ab ovo. Ficará também vedado o uso da ponderação de valores, a não ser que haja a comprovação de que o utente tenha construído a regra adstrita... Portanto, nada de pegar um princípio em cada mão e recitar o mantra da “ponderação”.

No nouveau régime que se instalará, o sistema acusatório prevalecerá no processo penal. Inclusive o art. 212 do CPP será cumprido. O STJ e o STF anularão todos os processos em que não for obedecido o novo modo de inquirição das testemunhas. O descumprimento do art. 212 não será mais “nulidade relativa”; será, sim, nulidade absoluta. Finalmente, a nova lei será cumprida e os advogados e promotores deverão eles mesmos produzir as provas. O juiz inquisidor terá seus dias contados.

Já no processo civil, não mais se falará em “escopos processuais”. Finalmente, o instrumentalismo será sepultado. As cinzas de Oskar von Büllow serão jogadas na costa brasileira e sua alma, juntamente com as de Liebmann (e outros...), descansarão em paz. Tudo graças ao nouveau regime.

Também o direito administrativo será levado a sério. Será vedada a sua “descomplicação” (é um sarcasmo!). Você não será mais multado por qualquer guarda de trânsito sem a possibilidade de defesa. Não mais bastará a palavra dele. Ele não terá mais “fé pública”. A Constituição triunfará. Todos dirão: viva, o direito administrativo não é mais só para fazer grandes congressos... Ou para fazer dissertações de mestrado. Agora vai valer mesmo. Inclusive os recursos que o advogado interpuser contra as multas serão lidos na íntegra pelas juntas. As juntas, quando negarem os recursos, fundamentarão as decisões. E já não se falará de outra coisa...

No direito penal, os tipos penais de perigo abstrato sofrerão uma forte censura (filtragem) hermenêutico-constitucional. Cada caso concreto será examinado à luz da presunção da inocência e, se necessário, será aplicada a técnica da Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung. É verdade. Finalmente, implementaremos o controle difuso para valer e este não mais servirá apenas para ornamentar dissertações e teses.

Nos crimes de furto, o sistema fará uma escolha: ou aplicará o critério da insignificância dos crimes de descaminho também para o furto ou os crimes de contrabando ou descaminho também serão avaliados de acordo com as balizadoras do furto. A isonomia será para valer. Inclusive na comparação entre a devolução do valor furtado com o pagamento dos tributos nos casos de sonegação. Fairness (equaninimidade), essa será a palavra mais usada. Isonomia. Igualdade. Estes serão os critérios norteadores dos tribunais.

Também o art. 557 do CPC será usado com mais parcimônia pelos tribunais. O nouveau régime dará cursos para evitar tantas decisões monocráticas... O CNJ baixará recomendação para que sejam revitalizados os juízos colegiados. Também os advogados, ao fazerem sustentações orais, serão ouvidos. Ninguém ficará mexendo nos computadores enquanto o causídico se esfalfela na Tribuna. Todos prestarão atenção.

No nouveau régime, uma portaria não valerá mais do que a Constituição. Nunca mais. O Ministro da Fazenda não legislará mais por resoluções. Nwem o da Previdência. A Comissão de Constituição e Justiça do Congresso examinará os projetos previamente. As ONG’s serão fiscalizadas. Muitos dos atuais dirigentes terão que trabalhar de verdade. Os atores da Globo não mais usarão os benefícios da Lei Rouanet. Oas Estádios da Copa não serão superfaturados. A fiscalização será implacável. E o crime de Fraude à Licitação não será mais punido com “cesta básica”.

No nouveau régime os advogados não mais serão maltratados e/ou humilhados. Eles não precisão mais implorar para serem recebidos pelos juízes. E receberão cafezinho na antessala do magistrado. Aliás, isso estará no novo Estatuto que o nouveau régime implantará. E, o que é melhor, o Estatuto dos Advogados será cumprido. Ah, no novo regime...!

Pronto. Eis as bases do putsch. Mas não quero ser o Robespierre desse regime. Pela simples razão de que este perdeu a cabeça. Falando mais sério ainda: um pouco de utopia vai bem. Nestes tempos de atopia e acronia, mirar um lugar inalcançável pode fazer bem ao nosso espírito. Um pouco de desconstrução do sistema pode levar a boas reconstruções. Como diz meu poeta favorito, Manoel de Barros, sempre compreendo o que faço depois que já fiz! Só esta frase já daria para fazer uma tese. Pura fenomenologia. Mas, o que quer dizer isto? No nouveau régime saberemos. Aliás, no novo regime os estudantes lerão Manoel de Barros. E tantos outros bons livros. E o Google não mais mentirá, porque será alimentado por jovens que refletem e não por aqueles que apenas se informam!

Numa palavra final. Estamos no mundo pela metáfora. E estamos nele porque simbolizamos. O texto acima também se pretende “metáfora”. Mas não pode ser somente uma metáfora. Como disse Wittgenstein — e cito-o, de cabeça, pela boca de Ruben Alves —, andaimes cercam a casa, mas não são a própria casa; uma vez construída a casa, desmontam-se os andaimes. Pois é. As metáforas talvez sejam isso. Nietschze talvez me ajude: tudo aquilo para que temos palavras é porque já fomos além. E, assim, fica mais fácil entender a frase acima de Manoel de Barros... Sim, sempre compreendo o que faço depois que já fiz!


https://www.conjur.com.br/2012-abr-12/senso-incomum-tomada-poder-pelos-estagiarios-regime
Por Lenio Luiz Streck
12/04/2012


quarta-feira, 13 de março de 2019

A METÁSTASE: Caso Marielle e Milícias no Rio de Janeiro






A METÁSTASE (*)

O assassinato de Marielle Franco e o avanço das milícias no Rio


N

o primeiro semestre de 2001, o professor Marcelo Baumann Burgos 
22 alunos do curso de ciências sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro para um estudo sociológico na favela Rio das Pedras, na Zona Oeste da cidade. Pesou na escolha 

da comunidade, além de seu tamanho – 40 mil habitantes na época e 80 mil hoje –, o fato de ser uma das poucas da capital fluminense sem narcotraficantes. Isso facilitava o trabalho dos pesquisadores e era motivo de elogios da parte de Burgos – o professor chegou a definir Rio das Pedras como “um oásis em meio à barbárie”.
“Em uma cidade marcada pelo recrudescimento da violência urbana, […] morar em uma favela sem ter que conviver com a sombria presença de traficantes torna-se, compreensivelmente, razão suficiente para aumentar o apego do morador ao lugar”, escreveu o sociólogo no livro que trouxe o resultado da pesquisa, A Utopia da Comunidade: Rio das Pedras, uma Favela Carioca, publicado em 2002. Quando fizeram o trabalho, nem Burgos nem seus alunos perceberam que aquela sensação de segurança derivava do poder exercido no local por uma nova forma de organização criminosa que surgia no Rio – os grupos paramilitares.
A favela data de 1969, quando o então governador do estado da Guanabara, Francisco Negrão de Lima, decidiu desapropriar uma área às margens do rio das Pedras para abrigar dez famílias de migrantes do Nordeste ameaçadas de expulsão pelo dono da propriedade. A partir de então, como costuma acontecer em vários lugares no trágico processo de urbanização do país, a comunidade cresceu descontroladamente. Nos anos 80 a prefeitura delegou à associação de moradores a tarefa de organizar a ocupação do espaço. Com isso, acabou fazendo dessa entidade privada uma extensão do poder público, criando, segundo Burgos, “uma autoridade paralela”, personalista, “que não foi constituída para gerir bens públicos para os cidadãos em geral”.
A associação passou a controlar Rio das Pedras com mão de ferro. A fim de evitar a entrada do tráfico na comunidade e manter a ordem, patrocinou nas décadas de 80 e 90 um grupo de justiceiros – no qual havia policiais – encarregado de expulsar ou, em certos casos, matar traficantes e usuários de drogas. Na virada para o século XXI, esse grupo ganhou proeminência na favela, o que não deixou de ser notado pelo sociólogo na pesquisa: “Como estamos em território da cidade informal, o grau de arbítrio desse tipo de segurança pública é fracamente regulado pelo ordenamento jurídico, estando amplamente permeável a uma moralidade local, para a qual é legítima a máxima ‘aqui, só quem faz besteira some’.” Burgos também percebeu atividades econômicas em expansão em Rio das Pedras, como o transporte por vans e a tevê a cabo, na época com 5 mil “assinantes”, sem associá-las, porém, ao emergente negócio dos paramilitares, que já controlavam esses serviços.
O mesmo modelo de organização criminosa, lucrativa, expandiu-se rapidamente para bairros próximos de Rio das Pedras, tomando áreas do tráfico de drogas. Formados por policiais e bombeiros, da ativa ou aposentados, esses grupos eram chamados inicialmente de “polícia mineira” – a expressão tem origem na maneira truculenta com que policiais de Minas Gerais capturavam criminosos durante incursões pelo Rio nos anos 60 e 70. Durante um tempo, os paramilitares foram apontados como responsáveis pela autoproteção das comunidades e não faltaram políticos que os tratassem com benevolência. “As autodefesas comunitárias são um problema menor, muito menor, do que o tráfico”, disse em 2006 o então prefeito do Rio, César Maia, que comparou os paramilitares cariocas às Autodefesas Unidas da Colômbia, grupo paramilitar que, entre 1997 e 2006, combateu a guerrilha das Farc e lucrou com o comércio de drogas. Os grupos do Rio, porém, ao fincar raízes, passaram a extorquir comerciantes e moradores, e rapidamente migraram para outras frentes econômicas, como a grilagem de terras – a ocupação irregular, mediante fraude e falsificação de documentos. “No Rio há muitos títulos de propriedade falsos, decorrentes de um sistema cartorial corrupto. Os paramilitares usam esse argumento para tirar os donos originais à força”, me disse a antropóloga Alba Zaluar, que há quatro décadas pesquisa o crime organizado no Rio de Janeiro.

Vera Araújo trabalha há trinta anos como jornalista e se especializou na cobertura de temas relacionados à segurança pública no Rio. Em março de 2005, numa reportagem que publicou no jornal O Globo, mostrou que onze grupos de paramilitares controlavam 42 favelas na capital, principalmente na Zona Oeste. Pela primeira vez, o termo “milícia” foi utilizado para identificar esses agrupamentos de policiais e ex-policiais. A escolha se deu por um motivo prosaico, me disse a repórter: era uma palavra curta, mais fácil de ser encaixada no título de uma reportagem de jornal do que o termo “paramilitares”.
Naquela época, os milicianos de Rio das Pedras eram comandados por Félix dos Santos Tostes, inspetor da Polícia Civil, que seria morto em fevereiro de 2007 em uma disputa pelo controle da associação de moradores do bairro. No mesmo mês do assassinato, o então deputado estadual Marcelo Freixo propôs uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar as milícias. “Estava no terceiro dia de mandato e fui motivo de chacota”, recordou o parlamentar do PSOL quando o encontrei numa tarde de fevereiro em seu apartamento na Zona Sul.
Um ano depois da proposta de Freixo, em 2008, a notícia de que uma repórter, um fotógrafo e um motorista do jornal O Dia haviam sido torturados por milicianos na favela do Batan, em Realengo, reacendeu o tema. Pressionados, os deputados da Assembleia Legislativa do Rio, a Alerj, aprovaram por maioria a instalação da CPI, presidida por Freixo. Durante cinco meses, a comissão ouviu 47 pessoas, incluindo o vereador Josinaldo Francisco da Cruz, o Nadinho, que havia substituído Félix Tostes como chefe da milícia de Rio das Pedras e era suspeito de ser o mandante do assassinato do inspetor.
Em depoimento sigiloso, Nadinho decidiu contribuir com a CPI e delatar outros onze milicianos que agiam na comunidade de Rio das Pedras. Pagaria caro por isso: foi morto com dez tiros um ano depois, em 2009. A CPI indiciou 226 pessoas, das quais 25 seriam assassinadas nos dez anos seguintes. Desde então, Freixo, que foi ameaçado de morte por grupos paramilitares, vive sob escolta policial. “A milícia não é o estado paralelo, é o estado leiloado, porque transforma o domínio territorial em domínio eleitoral. Por isso elege representantes e dialoga com o poder”, define o deputado do PSOL, hoje com 51 anos. As milícias não pararam de crescer na cidade. Atualmente, estão presentes em 88 das 1 018 comunidades do Rio, de acordo com o Ministério Público. Em vários lugares, transformaram-se em narcomilícias e passaram a disputar o controle do tráfico de drogas com o crime organizado que supostamente combatiam.

Marielle Franco esteve com Marcelo Freixo na investigação parlamentar contra os milicianos. Por nove anos, entre 2007 e 2016, a jovem negra criada no Complexo da Maré – um conjunto de dezesseis favelas onde moram 130 mil pessoas, na Zona Norte – foi assessora de Freixo. Ao mesmo tempo que cursava ciências sociais na PUC-Rio, ela coordenava na Assembleia Legislativa a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania, presidida pelo deputado. Em 2016, Marielle decidiu concorrer pela primeira vez a um cargo público. Candidatou-se a vereadora pelo PSOL e obteve a quinta maior votação na cidade – 46 mil votos, a maior parte deles oriundos da Zona Sul.
Seu mandato foi marcado pela defesa das mulheres, dos negros e das minorias, e também por duras críticas à violência policial. “Mais um homicídio de um jovem que pode estar entrando para a conta da PM. […] Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”, escreveu Marielle no Twitter em 13 de março do ano passado, a respeito da morte de um rapaz na favela do Jacarezinho. Na noite do dia seguinte, ela própria seria assassinada no Centro do Rio, aos 38 anos de idade.

Orelógio no painel do carro marcava 21h14. Fazia menos de dez minutos que Marielle, a sua assessora, Fernanda Chaves, e o motorista Anderson Gomes haviam deixado a Casa das Pretas, na rua dos Inválidos, no Centro da cidade, depois do debate “Jovens Negras Movendo as Estruturas”, organizado pelo PSOL. “Não sou livre enquanto outra mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas”, disse Marielle no encontro, citando a escritora norte-americana Audre Lorde – negra, feminista e gay, como a vereadora. “Vamos que vamos, vamos juntas ocupar tudo”, concluiu diante do público de pouco mais de vinte mulheres. Foi aplaudida, abriu o sorriso grande que lhe era característico e levantou-se, ajeitando a saia com estampas florais e a blusa azul-marinho de alças finas. Na saída, uma amiga a convidou para ir a um bar na Lapa. Marielle disse estar cansada e preferiu ir para casa, na Tijuca. Habitualmente, ela embarcava ao lado do motorista, mas naquele dia sentou-se atrás, ao lado da assessora, a bordo de um Agile branco.
Nenhum dos três percebeu, mas, assim que o Agile deixou a rua dos Inválidos, foi seguido por um Chevrolet Cobalt prata – o veículo com placas clonadas estava no local desde as sete da noite, quando Marielle chegou à Casa das Pretas para o debate. No banco traseiro do Cobalt, um homem segurava uma submetralhadora alemã HK MP5, calibre 9 milímetros, conhecida pela precisão de seus disparos.
Quando, às 21h20, o carro com a vereadora dobrou a esquina das ruas Joaquim Palhares e João Paulo I, no bairro do Estácio, ainda no Centro, o Cobalt emparelhou com o Agile a uma distância de 2 metros. Do vidro aberto do carro prata, a HK disparou treze tiros entre a porta direita traseira e o fim da lateral do Agile, exatamente no local onde estava Marielle.
Atingida por quatro balas no lado direito da cabeça – duas próximas à orelha, uma perto do olho direito e uma rente à boca –, a vereadora morreu instantaneamente. O motorista Anderson Gomes, que estava na linha de tiro, foi atingido por três balas nas costas. Soltou um gemido e largou as mãos do volante. Fernanda Chaves, a única a não ser atingida, abaixou-se rapidamente e puxou o freio de mão do veículo. Marielle estava com o corpo seguro pelo cinto de segurança, a cabeça caída para a frente, o sangue escorrendo pela nuca. Havia onze câmeras públicas de vídeo no trajeto feito pelo carro. Misteriosamente, cinco tinham sido desligadas, um ou dois dias antes dos assassinatos – uma delas, a poucos metros da cena do crime, não grava imagens e serve apenas para contar os veículos que passam pela via.
As mortes de Marielle e de Anderson indignaram os cariocas e o país. Na tarde do dia 15, cerca de 50 mil pessoas se aglomeraram em frente à Câmara Municipal para o velório, num ato que misturava dor e protesto. Houve manifestações populares em dezessete estados naquela noite. O crime foi destaque na imprensa internacional, ganhando as páginas dos jornais The New York TimesThe Washington PostThe Guardian e Clarín, entre outros. “O Estado, através dos diversos órgãos competentes, deve garantir uma investigação imediata e rigorosa”, cobrou a Anistia Internacional. “Não podem restar dúvidas a respeito do contexto, motivação e autoria do assassinato de Marielle Franco.” Dois dias após o crime, a assessora Fernanda Chaves deixou o Rio de Janeiro às pressas e, em seguida, foi com a família para a Espanha. Só retornou ao Brasil quatro meses depois, em julho do ano passado. Mesmo assim, por segurança, permanece fora do Rio.
Freixo, que sempre manteve uma relação muito próxima com a vereadora, afirma que ela não recebeu nenhuma ameaça de morte, inclusive naqueles dias que precederam o assassinato. “Toda semana, religiosamente, eu tomava um café com a Marielle. Na terça-feira, 13 de março, véspera do crime, no fim do dia, eu falei com ela pelo telefone e combinamos de ir à Maré no sábado seguinte. Ela estava tranquilíssima. Não tinha a menor ideia de que sua vida corria risco.”
A segurança pública do Rio de Janeiro estava sob intervenção federal, decretada pelo então presidente Michel Temer em fevereiro, um mês antes da morte de Marielle. Nos dias seguintes ao assassinato, procuradores chegaram a aventar a hipótese de que o atentado fora um recado aos militares que comandavam a intervenção. Logo, no entanto, essa hipótese perdeu força. Quando o Exército saiu do Rio, em dezembro último, foi descartada. Ficou cada vez mais evidente que o crime era obra de milicianos – e quanto a isso não há mais dúvidas. A guerra de versões que se trava em torno do caso há doze meses envolve disputas entre milícias e seus respectivos padrinhos na política carioca. Envolve ainda disputas surdas entre a Polícia Civil, de um lado, e a Polícia Federal e o Ministério Público, de outro. Envolve, por fim, divergências entre jornalistas, sobretudo no jornal O Globo.

Depois de viver uma década no Rio de Janeiro, o delegado Giniton Lages, 44 anos, praticamente perdeu o sotaque caipira. Paulista de Jaú, ele se formou em direito no interior de São Paulo. Seu sonho era ser promotor de Justiça. Durante cinco anos prestou concursos públicos para a carreira, sem sucesso. Decidiu então tentar uma vaga de delegado na Polícia Civil. Passou em concursos da corporação em Pernambuco, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Escolheu o último estado. Em 2008, assumiu o distrito policial de Japeri, na Baixada Fluminense, e de lá foi para a vizinha Belford Roxo. Em 2010, chegou à Delegacia de Homicídios (DH) da Baixada, onde atuou por oito anos. Em 17 de março do ano passado, três dias após a morte de Marielle, Lages assumiu a chefia da DH na capital, com a missão de elucidar o crime. A Delegacia de Homicídios conta com 10 delegados, 22 peritos, 206 agentes e 48 carros. De cada dez assassinatos ocorridos na capital, esclarece dois, me disse Lages – duas vezes mais do que a média no estado do Rio, conforme pesquisa do Monitor da Violência.
“Sem dúvida o caso Marielle é o maior desafio da minha carreira”, afirmou Lages na sede da DH, em área residencial da Barra da Tijuca, na tarde de 8 de fevereiro, sexta-feira. De olhos vincados e cabelos bem curtos, exibia no peito o típico distintivo dos delegados fluminenses, preso por um cordão no pescoço. A sala ampla onde ele despacha contrasta com o espaço exíguo em que trabalham outros delegados e escrivães. Na mesa em formato de “L” repousavam dezesseis dos mais de vinte volumes do inquérito 901-00385/2018, que apura o duplo homicídio. Lages mantém os documentos sob diligente sigilo. “Nenhum advogado teve acesso. Qualquer publicidade sobre as investigações pode pôr todo o nosso trabalho a perder”, justificou.
Conversei com três pessoas que tiveram acesso ao inquérito. Os papéis, segundo elas, revelam que faltou foco na ação da polícia nas primeiras semanas de apuração. Lages solicitou à Polícia Militar toda a relação de policiais lotados no 41º Batalhão, em Acari, Zona Norte, o recordista no estado em mortes provocadas por policiais – quatro dias antes de morrer, Marielle fez a seguinte crítica no Twitter: “O que está acontecendo agora em Acari é um absurdo! E acontece desde sempre! O 41° batalhão da PM é conhecido como Batalhão da morte. CHEGA de esculachar a população! CHEGA de matarem nossos jovens!” No entanto, nenhum policial daquele destacamento foi formalmente ouvido pela Delegacia de Homicídios. O delegado também convocou todos os proprietários de automóveis Cobalt de cor prata na capital a apresentarem seus veículos à polícia – são 7 375 apenas na capital, segundo o Departamento de Trânsito. Lages afirmou que foi feita vistoria em todos eles. O veículo utilizado no crime, porém, nunca foi encontrado.
Na noite de 21 de março, quarta-feira, a jornalista Vera Araújo, d’O Globo, decidiu ir até o cruzamento das ruas Joaquim Palhares e João Paulo I, onde tinha ocorrido o crime uma semana antes. Seu objetivo era localizar alguém que habitualmente passasse por aquele local sempre às quartas-feiras, entre nove e nove e meia da noite. Foi assim que ela encontrou duas testemunhas, que não tinham sido ouvidas pela polícia. Uma delas era um morador de rua, que presenciou o crime a uma distância de apenas 10 metros. “Foi tudo muito rápido. O carro dela [Marielle] quase subiu na calçada. O veículo do assassino imprensou o carro branco [onde estava a vereadora]. O homem que deu os tiros estava sentado no banco de trás e era negro. Eu vi o braço dele quando apontou a arma, que parecia ter silenciador”, disse o homem – para protegê-lo de uma possível retaliação, a jornalista não o identificou na reportagem.
Uma mulher também viu a cena, embora de uma distância maior. Tanto ela quanto o morador de rua contaram à repórter que PMs do 4º Batalhão, em São Cristóvão, chegaram minutos após o crime e pediram para que todos se afastassem do local, sem se interessar por possíveis testemunhas. Antes de publicar a reportagem, Araújo telefonou para o então chefe da Polícia Civil do Rio, Rivaldo Barbosa. “Ele nem deu bola. Depois que publicamos a história, ficou irritado, dizendo que eu expus aquelas pessoas.” A mulher encontrada por Araújo só foi ouvida duas semanas depois pela polícia, que não conseguiu localizar o morador de rua.

No dia seguinte ao crime, 15 de março, o então ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, e a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, desembarcaram no Rio. A dupla se reuniu à tarde na Cidade da Polícia, no bairro do Jacaré, Zona Norte, com Rivaldo Barbosa, o general do Exército Walter Souza Braga Netto, na época interventor na segurança pública do estado, e o procurador-geral de Justiça no Rio, José Eduardo Gussem. Na reunião, Dodge anunciou que iria instaurar uma apuração preliminar do caso no Ministério Público Federal (MPF). Embasaria assim um possível pedido ao Superior Tribunal de Justiça para que a investigação fosse feita pela Polícia Federal e pelo MPF, e não mais pelas autoridades fluminenses. Uma emenda de 2004 à Constituição Federal prevê a federalização na investigação de crimes quando há “graves violações aos direitos humanos” e se constata a incapacidade das forças de segurança estaduais para elucidar o delito. “Certamente a participação da Polícia Federal é importante nesse episódio”, disse Raquel Dodge em entrevista coletiva, após a reunião.
Naquele mesmo dia, ela nomeou cinco procuradores do MPF do Rio para “acompanhar todos os atos referentes às investigações” das mortes de Marielle e Anderson, com o objetivo de instruir o pedido de federalização das investigações ao STJ. O grupo de procuradores, entretanto, só teve tempo de solicitar à Polícia Civil informações sobre a estrutura da Divisão de Homicídios do Rio. Em 21 de março, o procurador-geral Gussem ingressou com um pedido no Conselho Nacional do Ministério Público para que a apuração dos procuradores federais fosse suspensa. “O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro vê-se surpreendido por uma incompreensível, desproporcional e prematura violência institucional”, argumentou.
O coordenador do grupo nomeado por Dodge, procurador Marcelo de Figueiredo Freire, rebateu: “Esclareço que não houve nenhuma usurpação da atividade conferida ao Ministério Público Estadual. Não houve investigação ‘paralela’ dos fatos.”
Em 3 de abril, foi concedida uma liminar proibindo a atuação dos procuradores federais no caso até o julgamento do pedido de Gussem. Em 21 de maio, antes que o caso fosse julgado, Dodge revogou a portaria que designava os cinco procuradores, desistindo de levar adiante a federalização das apurações. Recuou, mas não abandonou o caso –procuradores do MPF no Rio seguiram enviando a ela relatórios detalhados sobre o andamento das investigações.

Um mês após os assassinatos, o repórter Antônio Werneck recebeu na redação do jornal O Globo o telefonema de uma pessoa que disse haver um grande “furo” à espera dele na Superintendência da Polícia Federal do Rio. Werneck – que trabalha no jornal há 29 anos – especializou-se, como Vera Araújo, em investigações na área de segurança pública. Quando o jornalista chegou à PF, encontrou três delegados federais: Hélio Khristian Cunha de Almeida, conhecido como HK, Lorenzo Martins Pompílio da Hora e Felício Laterça. HK não tem currículo que se possa admirar: em 2002, quando trabalhava em Belém, capital do Pará, foi denunciado pelo MPF por corrupção passiva ao aceitar passagem aérea de um empresário investigado por corrupção pela própria PF. Quatro anos depois, já no Rio, HK foi novamente denunciado à Justiça por concussão (extorsão de dinheiro praticada por funcionário público), ao supostamente forjar um inquérito por crime previdenciário contra um empresário carioca e exigir dele 5 milhões de reais para arquivar a investigação. O delegado foi absolvido em primeira instância, os procuradores recorreram e o TRF da 2ª Região o condenou a dois anos e meio de prisão por corrupção passiva. Como o crime pelo qual foi condenado (corrupção) difere daquele pelo qual fora denunciado pelos procuradores (concussão), HK conseguiu anular a decisão. Ainda não há data para um novo julgamento – a defesa do delegado garante que vai provar sua inocência.
A trinca de delegados apresentou o repórter Werneck ao sargento da PM Rodrigo Jorge Ferreira, que estava ali para fazer uma revelação. Suspeito ele mesmo de ser um miliciano, Ferreira acusava duas pessoas de terem tramado o assassinato de Marielle: o vereador Marcello Siciliano, do PHS, e o ex-policial militar Orlando Oliveira de Araújo, que estava preso desde outubro de 2017, acusado de comandar uma milícia no bairro de Curicica, na Zona Oeste – daí, seu apelido: Orlando de Curicica.
Os negócios de Siciliano começaram no final dos anos 90, com a compra e venda de carros. Depois, ele passou a investir no mercado imobiliário em Vargem Grande e em terraplanagem no vizinho, Jacarepaguá. Abriu uma boate na Barra e mergulhou na política: depois de duas candidaturas malsucedidas, conseguiu se eleger vereador em 2016 com 13,5 mil votos – menos de um terço dos conquistados por Marielle.
Há fortes indícios do envolvimento do vereador com paramilitares – em escutas telefônicas autorizadas pela Justiça em outro inquérito da Polícia Civil, ele conversa com um miliciano e se despede com um “te amo, irmão”. Uma investigação do Ministério Público constatou que o nome de Siciliano aparece em mais de oitenta transações imobiliárias em áreas dominadas por paramilitares. Uma dessas áreas é Vargem Grande, onde assessores de Marielle participaram, em janeiro de 2018, de uma reunião na associação de moradores de Novo Palmares, comunidade encravada no bairro, para discutir programas de regularização fundiária. O objetivo seria combater a grilagem de terras praticada pela milícia no local.
Diante dos delegados e de Werneck, o sargento Ferreira relatou que Orlando de Curicica era uma espécie de capataz de Siciliano e ajudava o vereador na grilagem de terras na Zona Oeste. Por causa das ações comunitárias de Marielle na região, Siciliano teria ficado irritado com a vereadora. “Ela peitava o miliciano e o vereador. Os dois [Orlando e Marielle] chegaram a travar uma briga por meio de associações de moradores da Cidade de Deus e da Vila Sapê”, afirmou Ferreira. A favela Vila Sapê fica entre os bairros Curicica e Cidade de Deus.
Ferreira disse ainda ter ouvido os dois tramarem a morte de Marielle em um restaurante da Zona Oeste, em junho de 2017. “Eu estava numa mesa, a uma distância de pouco mais de 1 metro dos dois. Eles estavam sentados numa mesa ao lado. O vereador falou alto: ‘Tem que ver a situação da Marielle. A mulher está me atrapalhando.’ Depois, bateu forte com a mão na mesa e gritou: ‘Marielle, piranha do Freixo.’” Um mês antes do atentado – contou o sargento –, Orlando de Curicica, mesmo preso na penitenciária de Bangu 9, acusado de doze homicídios, transmitiu a ordem para que o plano de matar a vereadora fosse colocado em prática por seus subordinados.
Werneck gravou toda a conversa com o PM Ferreira, mas disse que só publicaria o relato se a testemunha formalizasse o depoimento aos três delegados, o que foi feito. A chefia de redação do jornal, no entanto, preferiu aguardar o depoimento do policial aos delegados da Delegacia de Homicídios, o que ocorreria dias depois. Foram seis oitivas em três semanas, realizadas no Círculo Militar da Praia Vermelha, na Urca, para evitar a imprensa, que se aglomerava diariamente em frente à sede da delegacia, na Barra da Tijuca, atrás de novidades no caso. Na quarta-feira, 9 de maio, a reportagem de Werneck foi manchete d’O Globo: “Delator envolve vereador no assassinato de Marielle.”
A partir daquele dia, Siciliano e Orlando da Curicica passaram a ser tratados como os principais suspeitos pelos assassinatos. O vereador deu dois longos depoimentos ao delegado Giniton Lages, sempre rebatendo o relato da testemunha. Siciliano não demorou a enxergar naquele enredo as digitais da família Brazão.

Os irmãos Domingos e Chiquinho Brazão são velhos conhecidos da política carioca. Domingos, 54 anos, é o segundo mais novo dos seis filhos de um casal de portugueses radicados em Jacarepaguá. Ele foi o primeiro da família Brazão a se aventurar nas urnas, em 1996, quando conseguiu uma cadeira de vereador. Dois anos mais tarde, elegeu-se deputado estadual pelo PMDB, função que exerceu por dezessete anos. Nesse período, Domingos acumulou um patrimônio declarado de 14,5 milhões de reais, em valores corrigidos.
Dono de uma rede de postos de combustíveis em sociedade com os irmãos, o deputado foi investigado na Polícia Federal por um suposto envolvimento em um esquema de adulteração de combustíveis e sonegação fiscal, mas, por falta de provas, não chegou a ser denunciado à Justiça. Em 2015, um ano após ser reeleito pela quarta vez consecutiva, tornou-se conselheiro do Tribunal de Contas do Estado, onde ficou até março de 2017, quando ele e mais quatro conselheiros foram presos pela Lava Jato fluminense na Operação Quinto do Ouro, acusados de corrupção. Todos acabaram soltos nove dias depois, mas permanecem afastados do TCE.
O irmão mais velho, João Francisco Inácio Brazão, o Chiquinho, 57 anos, também foi eleito vereador em sua primeira disputa eleitoral, em 2012, embalado pela carreira política de Domingos. No pleito seguinte, foi reeleito.
Os currais eleitorais dos irmãos Brazão e de Siciliano espalham-se pela mesma região do Rio, os bairros da Zona Oeste situados entre o Parque Nacional da Tijuca e o Parque Estadual da Pedra Branca: Tanque, Taquara, Pechincha, Curicica, Freguesia, Anil, Gardênia Azul, Itanhangá, Rio das Pedras, Vargem Grande, Vargem Pequena, Praça Seca e Recreio dos Bandeirantes. Juntos, esses locais, todos com maior ou menor presença de milicianos, somam 527 mil eleitores, segundo o Tribunal Superior Eleitoral. Domingos Brazão costumava fazer campanha em Rio das Pedras, como afirmou o vereador Nadinho na CPI das Milícias, em 2008.
Em meados de abril do ano passado, antes da publicação da reportagem de Antônio Werneck, Chiquinho e Domingos convidaram Marcello Siciliano para um almoço no Terraço Restaurante, no Centro do Rio. Conforme relato de Siciliano sobre a conversa, Domingos lhe disse que Chiquinho iria se candidatar a deputado federal nas eleições de outubro. Como sabia que o rival também planejava sua candidatura, foi direto ao ponto: “Marcello, vou te pedir um favor. Não me atrapalha, porque precisamos ganhar essa eleição.” Dois interlocutores de Siciliano confirmaram o diálogo à piauí. Chiquinho não quis se pronunciar sobre o episódio. À polícia, Domingos negou ter desavenças políticas com o rival da família.
Acuado pelo caso Marielle, depois das acusações veiculadas em maio, Marcello Siciliano desistiu de disputar as eleições de 2018. Chiquinho se elegeu deputado federal pelo Avante – em todas as quinze seções eleitorais da favela de Rio das Pedras ele foi o campeão de votos.
Havia mais razões para suspeitar que os irmãos Brazão tinham alguma influência sobre o depoimento do sargento Ferreira ao jornalista Werneck. O trio de delegados, antes de encaminhar Ferreira à Delegacia de Homicídios, convidou o repórter para ouvir o relato nas instalações da Superintendência da Polícia Federal, e o próprio superintendente da PF no Rio, Ricardo Saadi, ignorava a presença da testemunha ali. Além disso, HK, um dos três delegados envolvidos na história, era um bom amigo de Domingos Brazão e, na época da delação, investigava Siciliano por irregularidades fiscais na boate do vereador na Barra. “Foi um depoimento feito para vazar para a imprensa. Teve outro objetivo que não a investigação”, me disse Marcelo Freixo.
Policiais federais que apuram o caso suspeitam que o delator tenha sido levado até o trio de delegados por Gilberto Ribeiro da Costa, um policial federal aposentado muito próximo de HK e Lorenzo Pompílio da Hora e que também foi assessor de Domingos Brazão no Tribunal de Contas do Estado. Costa nega ter participação no episódio: “Isso é um devaneio, uma história fantasiosa. Já prestei depoimento na DH, tudo foi esclarecido.” A advogada de Ferreira, Camila Moreira Lima Nogueira, afirmou ter sido ela a responsável por levar seu cliente até a PF: “Eu não tinha acesso a ninguém da Polícia Civil […] Na PF, também não tinha. Eu fui até lá porque tinha um cliente que conhecia os delegados”, me disse por telefone.

Menos de uma semana depois da publicação da reportagem de Werneck com acusações do sargento Ferreira contra Siciliano e Orlando de Curicica, o delegado Giniton Lages foi ouvir esse último em Bangu 9. Curicica admitiu ter se encontrado com Siciliano em um restaurante da Zona Oeste, mas disse que se limitou a cumprimentar o vereador. Também negou ter participado das mortes de Marielle. No dia seguinte, o advogado de Curicica convocou a imprensa para apresentar uma carta escrita pelo cliente. No documento, o miliciano identifica nominalmente o PM que o delatou – até então, os jornais vinham omitindo a identidade dele – e o ataca. “Não tenho qualquer envolvimento nesse crime bárbaro”, escreveu. “O policial Rodrigo Ferreira não tem qualquer credibilidade, haja vista o mesmo chefiar as milícias do Morro do Banco [em Itanhangá, Zona Oeste] em conjunto com o tráfico de drogas da região.” A notícia sobre a carta, divulgada inicialmente pelo jornal O Dia, teve pouco destaque na edição impressa d’O Globo.
Dizendo-se ameaçado de morte no presídio, Curicica conseguiu ser transferido em 9 de maio para a penitenciária de Bangu 1, de segurança máxima. Quarenta dias depois foi transferido novamente – dessa vez para o presídio federal de Mossoró, no Rio Grande do Norte, também de segurança máxima. Em julho, a Polícia Civil prendeu dois policiais militares suspeitos de integrar a milícia de Orlando de Curicica; um deles teria participação nos assassinatos de Marielle e de Anderson. O cerco ao miliciano se fechava cada vez mais. Acuado, ele decidiu contra-atacar.
No final de agosto de 2018, Curicica pediu ao juiz Walter Nunes da Silva Júnior, corregedor do presídio federal em Mossoró, que o pusesse em contato com um procurador do Ministério Público Federal. Queria falar o que sabia. Por orientação do juiz, o advogado de Curicica formalizou o pedido, e Silva Júnior encaminhou o documento à procuradora Caroline Maciel, coordenadora do grupo de direitos do cidadão da instituição no Rio Grande do Norte. O depoimento de Curicica a Maciel durou mais de uma hora. O conteúdo era explosivo, mas não veio a público naquele momento. Ao retornar de Mossoró, a procuradora transcreveu as palavras do miliciano em um documento e o encaminhou, em sigilo, para a procuradora-geral da República, Raquel Dodge.
Alguns dias antes, em 19 de agosto, O Globo publicou uma reportagem não assinada que tratava de uma possível ligação entre a morte de Marielle e um grupo de matadores de aluguel formado por milicianos, chamado Escritório do Crime. Pela primeira vez, o grupo era vinculado ao caso. Era uma reviravolta nas investigações.
A reportagem dizia que o Escritório do Crime é suspeito de praticar assassinatos por valores que variam entre 200 mil reais e 1 milhão de reais, conforme o perfil da vítima e a complexidade da ação. A fama da gangue viria do fato de não deixar rastros de seus crimes. Uma de suas bases territoriais é justamente a região de Rio das Pedras, por onde passou o Cobalt prata com os matadores da vereadora do PSOL. O grupo de sicários se formou no início deste século com a função de proteger os bicheiros na violenta disputa por territórios. O Ministério Público suspeita que o Escritório do Crime esteja envolvido em pelo menos dezenove homicídios não esclarecidos nos últimos quinze anos no Rio de Janeiro.
A reportagem d’O Globo baseava-se no depoimento à Polícia Civil, dias antes, de um “integrante do bando” que andou pela região onde Marielle e o motorista Anderson foram mortos. Ele havia circulado pelo local minutos antes do crime, como descobriu um rastreamento feito pela polícia em seu celular. A identidade do suposto integrante do Escritório do Crime foi revelada apenas em janeiro deste ano. Tratava-se do major Ronald Paulo Alves Pereira. O policial militar, de 43 anos, foi acusado de participar, em 2003, da chamada chacina da Via Show, na qual quatro jovens, após terem sido sequestrados na saída de uma boate em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, foram cruelmente assassinados. Apesar de estar respondendo na Justiça pelo crime – o júri está previsto para abril deste ano –, Pereira foi promovido de capitão a major alguns anos depois. Quando depôs a respeito do Escritório do Crime, em agosto último, estava prestes a se tornar coronel, posto mais alto da Polícia Militar.
O major é apontado como um dos líderes do Escritório do Crime, junto com o ex-capitão da PM Adriano Magalhães da Nóbrega, 42 anos. Quando atuava no Batalhão de Operações Policiais Especiais do Rio, o Bope, Nóbrega tornou-se conhecido por sua habilidade com todo tipo de armas – era atirador de rara precisão – e pela crueldade com que comandava os treinamentos entre o fim dos anos 90 e o início dos anos 2000. “Ele batia nos alunos com barra de ferro. Chegou a quebrar o braço de um e a estourar o rim de outro”, me disse um policial que atuou no batalhão na época.
Tanto Adriano Nóbrega quanto Ronald Pereira foram homenageados na Assembleia Legislativa do Rio com menções honrosas propostas pelo então deputado estadual Flávio Bolsonaro. Para justificar a homenagem a Nóbrega, que ocorreu em 2003, Flávio argumentou que o então capitão prestava “serviços à sociedade, desempenhando com absoluta presteza e excepcional comportamento nas suas atividades”. Nóbrega havia sido apresentado a Flávio por um antigo colega do Bope, Fabrício Queiroz – o ex-assessor do filho de Jair Bolsonaro que está no centro do escândalo envolvendo repasses suspeitos de dinheiro para Flávio na Alerj.
Em 2005, após prender doze traficantes num morro no Rio, Nóbrega ganhou outra homenagem, também promovida por Flávio: a Medalha Tiradentes, a mais alta honraria da Alerj.
Quando ainda estava no Bope, Nóbrega envolveu-se com o jogo do bicho, atuando como segurança, e começou a ser acionado para praticar assassinatos a mando dos chefões da jogatina. Foi preso em 2011 em uma operação policial contra os contraventores e, três anos mais tarde, acabou expulso da PM. Isso não impediu Flávio Bolsonaro de empregar a mulher e a mãe do ex-capitão em seu gabinete na Assembleia Legislativa – a primeira desde 2007; a segunda, a partir de 2016. As duas só foram exoneradas em novembro do ano passado, depois que o nome de Nóbrega surgiu nas investigações do caso Marielle. Em janeiro deste ano, depois que a ligação de Flávio com o ex-PM foi revelada pela imprensa, o atual senador divulgou uma nota em que dizia sempre defender agentes de segurança pública, mas atribuiu a nomeação das duas mulheres a uma indicação de Queiroz.
Flávio foi o principal cabo eleitoral da campanha de Wilson Witzel, do PSC, ao governo fluminense. O apoio do filho de Bolsonaro catapultou o então desconhecido ex-juiz federal para a vitória no segundo turno, em 28 de outubro. Durante a campanha, Witzel apareceu no alto de um caminhão no Centro de Petrópolis, na serra fluminense, ao lado de dois candidatos a deputado pelo PSL, partido dos Bolsonaro. Ambos exibiam orgulhosos uma placa de rua com o nome de Marielle rasgada em dois pedaços. Segurando a placa mutilada, o então candidato a deputado estadual Rodrigo Amorim bradou: “Esses vagabundos, eles foram na Cinelândia [Centro do Rio] e, à revelia de todo mundo, eles pegaram uma placa da praça Marechal Floriano e botaram uma placa escrito rua Marielle Franco.” E continuou: “Eu e Daniel [Silveira, candidato a deputado federal] essa semana fomos lá e quebramos a placa. A gente vai varrer esses vagabundos. Acabou PSOL, acabou PCdoB, acabou essa porra aqui. Agora é Bolsonaro, porra.” Tanto ele quanto Silveira foram eleitos. Enquanto a plateia vibrava ao fundo da imagem, Witzel, que filmava tudo com o celular, virou o aparelho na própria direção e disse: “É isso aí, pessoal, olha a resposta.” Dias depois, ele pediria desculpas à família de Marielle.

OEscritório do Crime reapareceria na imprensa em 1º de novembro, quando os jornalistas Vera Araújo e Chico Otávio publicaram no site do jornal O Globo uma entrevista com Orlando da Curicica feita por escrito. O carioca Otávio construiu sua reputação com reportagens investigativas sobre políticos do Rio. Em parceria com Araújo, o repórter havia mergulhado na cobertura do caso Marielle – “sem dúvida o maior que já cobri nessa área”, ele me disse.
Na entrevista de Curicica, realizada na última semana de outubro, o miliciano resumiu o depoimento que tinha dado no final de agosto à procuradora Caroline Maciel, em Mossoró. Disse que a Polícia Civil, incluindo a cúpula da corporação, não investigava o Escritório do Crime porque recebia propinas do jogo do bicho, ao qual os matadores eram ligados. “O que tenho a dizer, ninguém gostaria de ouvir: existe no Rio hoje um batalhão de assassinos agindo por dinheiro, a maioria oriunda da contravenção. A DH [Delegacia de Homicídios] e o chefe de Polícia Civil, Rivaldo Barbosa, sabem quem são, mas recebem dinheiro de contraventores para não tocar ou direcionar as investigações, criando assim uma rede de proteção para que a contravenção mate quem quiser. Diga, nos últimos anos, qual caso de homicídio teve como alvo de investigação algum contraventor?”, questionou o miliciano.
Curicica também acusava o delegado Giniton Lages, que deu início às investigações, de pressioná-lo a assumir a autoria da morte de Marielle. “No dia 10 de maio, o delegado […] foi me ouvir, mas já chegou dizendo que tinha ido lá para ouvir eu falar que o Siciliano tinha me pedido para matar a vereadora. Eu disse que isso não era verdade. Ele disse: ‘Fala que o vereador [Siciliano] te procurou e você não quis, e outra pessoa fez.’ Como me recusei, ele disse que ia futucar a minha vida e colocar inquéritos na minha conta, que me mandaria para Mossoró e, de fato, foi o que fez. Mas o tempo todo percebi que eles [os investigadores] estavam perdidos, sem caminho nenhum.”
Procurado pela piauí, Barbosa não quis se pronunciar. Na época, por meio de nota, refutou as acusações feitas no jornal. Lages negou ter ameaçado o miliciano. “Palavras o vento leva”, me disse o delegado.
Os jornalistas Vera Araújo e Chico Otávio, que pretendiam publicar a entrevista de Curicica no jornal impresso que circularia em 2 de novembro, tiveram de antecipá-la no site d’O Globo ao saberem que o então ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, convocara uma entrevista para o fim da tarde do dia 1º. Em decorrência do depoimento do miliciano ao Ministério Público Federal no Rio Grande do Norte, o ministro anunciou na coletiva a abertura de inquérito na Polícia Federal para investigar uma possível obstrução de Justiça por parte da Polícia Civil fluminense no caso Marielle. “A investigação [do homicídio] de Marielle continua em nível estadual. Continua com polícia e Ministério Público estadual. O que se está fazendo é criar um outro eixo, que vai investigar aqueles que – sejam agentes públicos, sejam aqueles ligados ao crime organizado ou a interesses políticos – estão procurando fazer de tudo para impedir que se elucide esse crime. É uma investigação da investigação”, afirmou Jungmann aos jornalistas.
Dias antes, o ministro se reunira em Brasília com Raquel Dodge e com a coordenadora do MPF na área criminal, Raquel Branquinho, para discutir quais medidas seriam adotadas depois do depoimento de Orlando de Curicica. O trio teve a ideia de aproveitar as acusações do miliciano para pedir à PF que entrasse no caso por meio de um inquérito que apurasse as ações da Polícia Civil no caso Marielle. Uma equipe da Polícia Federal em Brasília, formada por um delegado e por seis agentes, mudou-se para o Rio e passou a trabalhar com a máxima discrição, em endereço sigiloso, longe da Superintendência da PF.

No início da noite de 14 de novembro, quarta-feira, o delegado Giniton Lages assistia ao telejornal local da Globo no Rio quando tomou um susto. “O RJ2 teve acesso com exclusividade ao inquérito que apura as execuções da ex-vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes. Oito meses depois, a polícia acumula milhares de páginas, mas ainda tem poucas conclusões”, disse o apresentador do telejornal. A reportagem afirmava que, apesar de o Escritório do Crime ser citado no inquérito, até aquele momento a principal linha de investigação da Delegacia de Homicídios ainda apontava para o vereador Marcello Siciliano e o miliciano Orlando de Curicica. Parte dos papéis, em páginas digitalizadas, havia vazado para o jornalista Leslie Leitão, produtor da TV Globo no Rio, que acompanha o caso Marielle desde o início – depois de atuar na imprensa como repórter de esportes e de polícia, ele migrou em 2017 para a emissora carioca.
Lages supôs que a Globo preparava uma reportagem especial sobre o caso Marielle para o Fantástico do domingo seguinte, dia 18, o que, segundo Leitão, não estava nos planos da emissora. O delegado deixou o feriado de 15 de novembro passar e, na manhã do dia seguinte, bateu à porta do juiz Gustavo Gomes Kalil, da 4ª Vara Criminal do Rio, onde tramita o inquérito do caso. Pediu ao juiz que concedesse liminar impedindo a emissora de citar detalhes da investigação. No início da tarde, Kalil acatou o pedido: a Globo foi proibida de falar do inquérito em reportagens, sob pena de pagar uma multa de 1 milhão de reais a cada citação do documento. “O vazamento do conteúdo dos autos é deveras prejudicial, pois expõe dados pessoais das testemunhas, assim como prejudica o bom andamento das investigações, obstaculizando e retardando a elucidação dos crimes hediondos em análise”, justificou o magistrado.
A emissora foi notificada da decisão ainda naquele dia. Coube aos apresentadores Alexandre Garcia e Giuliana Morrone ler um editorial no Jornal Nacional daquela noite: “A TV Globo quer assegurar o direito constitucional do público de se informar sobre o que podem ser as falhas do inquérito que em oito meses não conseguiu avançar na elucidação dos bárbaros assassinatos da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson. E deseja fazer isso seguindo seus princípios editoriais, o que significa informar sem prejudicar testemunhas ou investigações.” A Globo recorreu, mas o Tribunal de Justiça manteve a decisão de Kalil. A emissora acatou a medida e não voltou a exibir reportagens sobre o inquérito.
O delegado Lages critica o comportamento da mídia no caso Marielle. “O jornalista deve ter um freio ético. A imprensa atrapalha demais. O tempo do inquérito não é o meu, nem o do Freixo, nem o da Globo. É o tempo dele.”

OMinistério Público Estadual do Rio passou por uma dança de cadeiras importante no decorrer das investigações. Desde o início, o caso Marielle esteve sob os cuidados de Homero das Neves Freitas Filho, titular da 23ª Promotoria de Investigação Penal, responsável por acompanhar os inquéritos da Delegacia de Homicídios na capital. Em junho de 2018, em entrevista ao jornal O Globo, o promotor esbanjava otimismo: “Dentro dos recursos disponíveis, considero que os avanços na investigação são grandes, com reais possibilidades de identificação e prisão dos executores e mandantes.”
Mas as semanas passavam, e o inquérito se arrastava, sem rumo. Pressionado, em 21 de agosto o procurador-geral de Justiça, Eduardo Gussem, decidiu promover Freitas Filho à Procuradoria – ele passaria a atuar em ações que tramitavam em segunda instância, no TJ do Rio, e deixaria o caso Marielle. A mudança coincidiu com o depoimento em que Curicica acusava a Delegacia de Homicídios de negligência na investigação. Freitas Filho se aposentou em 1º de fevereiro deste ano. Procurado pela piauí, não quis se manifestar.
Para o lugar dele, o procurador-geral nomeou a promotora Letícia Emile Alqueres Petriz, 38 anos, que há uma década atua no Ministério Público. Petriz decidiu então pedir auxílio ao Gaeco (Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado), um setor especializado do Ministério Público. Foi prontamente atendida. A direção do Gaeco incumbiu a promotora Simone Sibilio do Nascimento de auxiliar Petriz nas investigações do caso Marielle.
Antes de ingressar no Ministério Público, em 2003, Nascimento, 46 anos, foi policial militar – chegou ao posto de capitã – e delegada na Polícia Civil. Herdou dos tempos de PM o rigor e a disciplina profissional. Formou-se em direito pela PUC-Rio em 1999 com o estudo “Controle externo do mp na atividade policial”. O título do trabalho já prenunciava os embates que ela teria com a DH no caso Marielle.
Diferentemente do promotor Homero Freitas Filho, Petriz e Nascimento sempre suspeitaram da veracidade das declarações da testemunha que acusou Siciliano e Curicica pelo crime. Na investigação que passaram a fazer com a ajuda dos policiais federais vindos de Brasília, as duas apostaram suas fichas no envolvimento do Escritório do Crime na morte de Marielle. Com autorização judicial, o grupo já obteve trinta quebras de sigilo bancário e oitenta quebras de sigilo telefônico de alvos ligados ao grupo miliciano.
Em algumas conversas gravadas, o ex-capitão Nóbrega é chamado de “patrãozão” pela milícia de Rio das Pedras. Em um dos diálogos, um miliciano afirma ter recebido quatro caixas de uísque de um deputado – o parlamentar não é identificado pelo Gaeco. Em 21 de janeiro, as promotoras recorreram à Draco (Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas), da Polícia Civil – e não à Delegacia de Homicídios – para cumprir os mandados de prisão, na manhã do dia seguinte, de treze membros do Escritório do Crime. Entre eles estavam o ex-capitão Adriano Nóbrega e o major Ronald Pereira. A operação foi batizada de “Os Intocáveis” – era uma maneira de realçar a impunidade que havia anos pairava sobre o grupo. A fim de evitar vazamentos, os celulares de todos os policiais envolvidos na operação foram confiscados até o dia seguinte. O cuidado não foi suficiente: oito dos trezes alvos conseguiram escapar do cerco policial, e seis continuavam foragidos até o fim do mês do passado. Entre eles, Nóbrega.
A promotora Petriz fez questão de ir à casa do major Pereira, em Curicica, para acompanhar sua prisão. Ao vê-lo algemado, ela foi direto ao assunto: “O que você tem a dizer sobre o assassinato de Marielle?” O PM abaixou a cabeça e ficou em silêncio. Nem Petriz nem Nascimento quiseram falar com a piauí. A defesa do major nega tanto o envolvimento dele com o Escritório do Crime quanto a participação na morte de Marielle.
Às 6h15 do dia 21 de fevereiro, exatamente um mês após a execução da operação “Os Intocáveis”, Domingos Brazão levou um susto ao se deparar com quinze agentes da PF dentro de sua casa. Com uniformes camuflados, capacetes e metralhadoras, eles arrombaram a porta da residência de Brazão, em um condomínio fechado na Barra da Tijuca. Os policiais cumpriam um dos oito mandados de busca e apreensão para “apurar possíveis ações que estariam sendo praticadas com o intuito de obstacularizar as investigações dos homicídios de Marielle e Anderson”, conforme nota divulgada pela PF. Os outros alvos eram o delegado HK, o agente aposentado Gilberto Costa, o sargento Rodrigo Ferreira e sua advogada, Camila Nogueira.
As promotoras e a Polícia Federal já estão certas da participação do grupo de assassinos no crime contra a vereadora. Quem mandou matar e por qual motivo são questões ainda sem respostas. “O crime se espalhou pelo poder constituído do Rio. Tem bancada. É uma metástase sem controle. O estado não sai mais dessa situação por suas próprias mãos”, me disse uma autoridade que participa das investigações do caso Marielle.

Reportagem de
 ALLAN DE ABREU
Revista PIAUÍ, março de 2019